O Ministério da Defesa fez uma proposta em abril do ano passado — mas o governo decidiu não levar adiante — para que o presidente Jair Bolsonaro mudasse a legislação e decretasse estado de “mobilização nacional” a fim de concentrar a coordenação dos esforços contra a pandemia de Covid-19, segundo documentos do Ministério da Defesa aos quais o G1 teve acesso.
A proposta permitiria a um comitê do governo federal, comandado pela Defesa, determinar ações e atividades a serem executadas por prefeitos e governadores, intervir na produção da indústria (inclusive com “fiscais de produção”, por exemplo) e convocar civis e militares da reserva.
Para isso, o ministério defendeu mudanças na lei que trata da chamada mobilização nacional. Prevista na Constituição, a medida só poderia ser adotada atualmente em situações de agressão estrangeira e após autorização do Poder Legislativo.
A mudança, a ser feita por medida provisória, incluiria a possibilidade de uso da medida também em “casos de calamidade pública de repercussão nacional, reconhecida pelo Congresso Nacional”.
Junto com a medida provisória, o ministério defendia a publicação de um decreto estabelecendo a mobilização nacional em decorrência da Covid-19. Nesse caso, as medidas passariam a ser decididas pelo Comitê do Sistema Nacional de Mobilização (Sinamob), que reúne ministérios do governo federal e é comandado pela Defesa.
Por meio da assessoria de imprensa, a Casa Civil informou que “a referida proposta de mudança na Lei que dispõe sobre a mobilização nacional foi analisada dos pontos de vista jurídico, político e técnico e concluiu-se pela não continuidade da iniciativa”.
O G1 perguntou ao Ministério da Defesa se a proposta foi iniciativa da pasta ou atendeu a pedido do Palácio do Planalto, mas não obteve resposta. O ministério também não informou se mantém atualmente a mesma avaliação sobre o tema.
O texto do decreto proposto pelo ministério permitiria, por exemplo, a “convocação dos entes federados”.
Nesse caso, o Sinamob determinaria a governadores e prefeitos ações a serem tomadas diretamente, além da disponibilização de equipamentos públicos e serviços.
A convocação também poderia incluir “medidas de restrição que seriam tomadas para proteção da população”. Um artigo ainda deixava espaço para “outras ações necessárias e indispensáveis para o enfrentamento da calamidade pública.”
O decreto também permitiria ao comitê requisitar bens e serviços, uma medida já permitida em lei e que vem sendo regularmente utilizada pelo governo.
O novo texto, no entanto, permitiria ao comitê ir além, com determinação a empresas públicas e privadas de “direcionamento da produção, comercialização e distribuição”, “reorganização da oferta de determinados bens e serviços” e até determinação da “oferta de determinados bens e serviços, gratuitamente ou com preços acessíveis ao consumidor”.
Para acompanhar o cumprimento das medidas, o comitê poderia designar um fiscal de produção. Em casos extremos de descumprimento das requisições, o decreto permitiria até a “intervenção nos fatores de produção pública e privada”. Nessa hipótese, o comitê poderia inclusive determinar o afastamento dos dirigentes das empresas.
As exposições de motivos das medidas foram assinadas em 13 de abril pelo então ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva. Até aquele momento, o Brasil havia registrado 23,7 mil casos da doença, com 1,4 mil mortes — nesta quarta-feira (21), os casos acumulados desde o início da pandemia eram 14,1 milhões e os de mortes, 381,6 mil.
O ministro afirma nas exposições de motivos que a medida seria “extremamente necessária para organizar e coordenar todos os esforços, do poder público e da sociedade, no enfrentamento à calamidade de repercussão nacional decorrente da pandemia da Covid-19”.
O argumento é o mesmo da nota técnica que iniciou o processo no ministério, com data de 24 de março. Nessa nota, o vice chefe de Logística e Mobilização do Estado Maior, vice-almirante Sérgio Nathan Marinho, afirma que a medida permitiria “ao Governo Federal coordenar e orientar o esforço nacional, de forma célere e compulsória, direcionando-o ao enfrentamento da pandemia consequente da Covid-19”.
Durante a tramitação interna das propostas, surgiram questionamentos sobre as medidas. Um parecer do diretor do Departamento de Organização e Legislação da pasta diz, por exemplo, que “considerando o caráter impositivo das referidas medidas a serem definidas pelo Comitê, não se descarta a possibilidade de o dispositivo ser questionado por eventual esvaziamento da competência dos demais entes federativos para tratar de saúde”.
Em outro ponto, o mesmo documento ressalta que as intervenções em empresas e em políticas de preço poderiam ser vistas como violações ao direito de propriedade e ao princípio constitucional da livre iniciativa.
A defesa das medidas é feita, no entanto, pela Consultoria Jurídica do ministério.
“A gravidade da doença e as mazelas por ela provocadas – afora as que ainda estão por vir – conferem o respaldo seminal para a idealizada alteração legislativa”, afirma o parecer assinado pela coordenadora-geral de atos normativos do órgão, Carolina Saraiva.
“A breve leitura das regras contidas na minuta faz clara a austeridade das providências que poderão ser implementadas pelos Poderes Públicos, tão logo a norma seja editada. O instrumento – ainda sujeito ao crivo do Congresso Nacional – promoverá a restrição de direitos, na exata medida exigida para contenção da crise gerada pela pandemia do coronavírus”, diz o texto.
Sobre as possíveis contestações ao decreto, a Consultoria Jurídica do ministério afirmou ainda que “a decretação da mobilização nacional alteraria o cenário jurídico, conferindo ao Presidente da República indiscutível papel de proeminência na gestão da crise e na tomada de decisões”.
“A mobilização nacional — tal qual as regras atinentes à divisão de competências materiais — tem assento constitucional. Preenchidos os pressupostos formais e materiais para a decretação da medida extrema — aí incluída a autorização do Congresso — admitir-se-á que determinadas ações sejam impostas aos entes federados, inclusive à própria União”, conclui o texto.
Fonte: g1.globo.com
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