Elas chegaram em novembro passado dentro de seis contêineres de madeira em um jumbo fretado de Joanesburgo para o Rio de Janeiro. Dentro de cada caixa, três girafas bebês respiravam por pequenos orifícios de ventilação e trombavam umas nas outras, agitadas, após um voo de 10 horas.
Foram quase quatro horas até que todos os 18 animais fossem transferidos por guindastes para caminhões e levados para uma quarentena que deveria durar 15 dias. Um mês depois, três das girafas morreram em circunstâncias ainda obscuras.
Registros da Polícia Federal mostram as outras 15 girafas feridas e, segundo autoridades, cercadas de fezes e urina sob atos contínuos de “maus tratos, abuso e crueldade”.
O caso deu início a uma investigação envolvendo executivos de um zoológico no Rio de Janeiro e comerciantes de animais selvagens baseados em Joanesburgo e na Cidade do Panamá.
Todos os animais foram importados como parte de um projeto de conservação anunciado pelo BioParque, novo nome do antigo zoológico do Rio de Janeiro, hoje sob gestão privada. O zoológico nega qualquer irregularidade e diz que as demais girafas estão “absolutamente bem”.
Mas os investigadores suspeitam que a real intenção do acordo de importação — que custou mais de R$ 6 milhões — seja comercial, de acordo com um inquérito da Polícia Federal de 5,4 mil páginas ao qual a BBC teve acesso.
Tanto o importador quanto o vendedor internacionais são citados, segundo autoridades braslieiras, em outros casos de suposta exploração animal envolvendo golfinhos, leões e macacos.
Eles não responderam aos repetidos pedidos de entrevistas da BBC.
Em relatório incluído no inquérito, a Polícia Federal brasileira diz que “não temos dúvida… que o presente caso se trata do maior caso de Tráfico de Animais Silvestres da história do Brasil”.
Alheias a uma longa batalha de laudos, contralaudos e mudanças nos responsáveis pela investigação, as 15 girafas sobreviventes têm ferimentos ao redor dos olhos, pernas e torsos e enfrentam condições que põem em risco suas vidas, segundo laudo policial.
O BioParque diz que “as lesões relatadas são absolutamente normais para animais de mega fauna, como girafas e elefantes”.
“Os ferimentos apontados como maus tratos, em sua maioria, eram escoriações antigas que foram relatadas às autoridades e não causam sofrimento dos animais”, diz um porta-voz do BioParque à reportagem.
Após desembarcarem no aeroporto internacional do Galeão, no Rio, os animais foram encaminhados para uma área isolada dentro de um luxuoso resort de praia para quarentena.
Por pelo menos sete meses, os animais foram mantidos em grupos de dois ou três dentro de baias de 31 metros quadrados (veja nas fotos abaixo o espaço), com pouca luz, alta umidade, mobilidade limitada e cercados de excrementos, segundo laudo policial ao qual a BBC teve acesso.
O zoológico diz que “os animais sempre estiveram em um ambiente seguro, sob os cuidados de profissionais dedicados ao manejo e bem-estar”.
Em 14 de dezembro de 2021, durante um banho de sol, seis girafas romperam uma cerca e fugiram da área de isolamento.
Funcionários mais tarde disseram à polícia que “várias pessoas teriam perseguido as girafas e, com o uso de cordas, de forma não muito bem esclarecida, teriam laçado e trazido os seis espécimes de volta à área de cambiamento”, segundo o inquérito.
Após serem recapturadas, três girafas morreram em um intervalo de 3 horas. Necropsias realizadas pelo BioParque sem a presença de autoridades do governo determinaram que os animais apresentavam hematomas, lesões pulmonares e coágulos cardíacos.
Os exames dizem que todos os três morreram de “miopatia de captura” — ou estresse muscular extremo ligado à captura, segundo veterinários.
A polícia diz que o zoológico só relatou as mortes depois que os animais foram enterrados.
“A legislação não exige que os animais sejam enterrados após notificação ou com a presença de funcionários do governo”, disse um porta-voz do zoológico à BBC.
“Todas as informações relativas ao óbito, inclusive os laudos de necropsia, elaborados por profissionais habilitados, dentre eles um profissional independente, foram amplamente divulgados e apresentados ao Ibama”, alega o zoológico.
Em meio a suspeitas sobre provas terem sido escondidas no processo, uma exumação foi realizada pela polícia e um novo relatório de autópsia deve ser publicado nos próximos meses.
“Pode-se concluir que a fuga dos animais foi um evidente sinal do sofrimento que os espécimes sentiam por não conseguirem se adaptar às condições adversas do meio”, diz o laudo oficial da perícia realizada no local.
Outro investigador da polícia federal é mais incisivo em relatório anexado ao inquérito: “A morte das três girafas e o atual aprisionamento das ainda 15 girafas sobreviventes é consequência direta do despreparo premeditado”.
As mortes das girafas foram “um fato imprevisível e a todos consternou”, disse um porta-voz do zoológico à BBC, acrescentando que as cercas tinham “características estruturais que atendiam plenamente as normas em vigor e tendo sido chanceladas pelos órgãos ambientais”.
“O óbito das girafas fez com que o BioParque redobrasse os cuidados (…) adotando parâmetros de segurança muito mais elevados do que os recomendados.”
O especialista em resgate de animais Roched Seba, presidente do Instituto Vida Livre, discorda.
“O zoológico age como se essas mortes fossem normais. Como quando você compra um saco de laranjas e uma ou duas estão podres”, disse ele à BBC.
“As 18 girafas chegaram ao Brasil com 2,5 e 3m de altura, então elas devem ter entre um e dois anos agora”, diz uma autoridade diretamente ligada à investigação, que prefere permanecer no anonimato.
“São todas bebês.”
Autoridades também apontam possíveis falhas de agentes ambientais brasileiros que permitiram a importação.
Um dos chefes de investigação ambiental foi afastado do caso depois de assinar um duro relatório com críticas à atuação do Ibama.
Outros relatórios foram posteriormente divulgados por orgãos ambientais e pelo zoológico, negando irregularidades.
Uma sequência de medidas judiciais vem atrasando uma eventual análise da Justiça brasileira — o que seria a única maneira de mudar o destino das girafas importadas para o Brasil.
Ana Paula Vasconcelos, vice-presidente da Comissão de Direito Animal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do DF e advogada do Fórum Animal, assina uma ação em nome dos animais do zoológico.
“Precisamos de uma solução imediata para o bem-estar das girafas”, disse ela à BBC.
No processo de importação, o BioParque apresentou um projeto de conservação para autoridades brasileiras, argumentando que as girafas fariam parte de um grande projeto sustentável.
“(Vamos) apoiar iniciativas de conservação de girafas em 15 países africanos, através da parceria com a Giraffe Conservation Foundation, a ONG mais importante do mundo dedicada à conservação das girafas”, dizia o texto, ao qual a BBC teve acesso.
A reportagem procurou a ONG.
“Não é correto dizer que estejamos ou jamais estivemos em qualquer tipo de parceria com o BioParque. Essas são alegações falsas feitas pelo zoológico”, afirmou a diretora executiva do GCF, Stephanie Fennessy, em nota à BBC.
“Enquanto recebemos doações e/ou subsídios de vários zoológicos ao redor do mundo, nunca recebemos nenhum financiamento do BioParque, nem discutimos — e muito menos concordamos — qualquer tipo de parceria”, diz Fennessy.
O zoológico informa que um mapeamento genético começou a ser feito depois que os animais chegaram ao Brasil.
Especialistas, no entanto, dizem que o trabalho deveria ter sido realizado antes de as girafas saírem da África do Sul.
Segundo relatório da perícia da Polícia Federal, a falta de detalhes genéticos antes da importação invalida quaisquer alegações de que se trata de uma importação com fins de conservação.
“A base de um projeto de conservação animal reside no conhecimento da espécie dos indivíduos a serem conservados”, diz o texto.
“Não adianta reunir espécimes aleatórios de girafas sem haver uma determinação da correta espécie de cada indivíduo, já que animais de espécies diferentes, ainda que sejam capazes de se reproduzir entre si, geram descendentes híbridos, os quais não são férteis.”
A polícia investiga se o zoológico planejava revender parte das girafas para outros zoológicos, o que ajudaria a reduzir os custos gerais de importação — especialmente transporte.
“O BioParque repudia as caluniosas acusações de que teria interesse comercial lucrativo no processo de importação das girafas. A venda das girafas nunca foi considerada”, diz o zoológico à BBC.
“O BioParque comprou 18 girafas com o objetivo de realizar ações para conservação integrada dentro do Plano de Manejo e Pesquisa da espécie. É natural que a conservação não se faz sozinho, razão pela qual outros parques poderiam e podem ingressar no projeto conforme a pertinência. Há outras girafas no país da mesma espécie e aqueles que desejarem poderão, sob critérios científicos e compromissos firmados, integrar ao Plano.”
A legislação internacional exige que todos os animais selvagens comercializados tenham números individuais e microchips anexados aos seus corpos para identificação e rastrabilidade.
Mas a polícia investigadores descobriram que pelo menos quatro números que aparecem na licença de importação são diferentes dos que estão armazenados nos microchips das girafas que de fato chegaram ao Brasil.
O zoológico confirmou esta diferença, mas diz que “as divergências encontradas nos chips não são inusuais” e que “todos os animais têm procedência e cumpriram com os requisitos da importação”.
Para investigadores, isso indica que os animais que chegaram ao Brasil podem não ser os que estão declarados nos documentos.
Procurado, um porta-voz da Convenção Cites, que regula o comércio internacional de animais selvagens, disse à BBC que a responsabilidade pelas licenças é das “autoridades de gestão dos países envolvidos”.
Segundo a advogada de direitos dos animais Ana Vasconcelos, crimes de tráfico, maus tratos e falsidade podem ter sido cometidos neste caso.
“A partir do momento que você traz um animal com uma identificação diferente da que está na ficha de importação, isso é tráfico de animais. As girafas não são aquelas indicadas pelo exportador e isso é ilegal”, diz.
O zoológico rejeita a acusação, alegando “total transparência e nenhuma hipótese de ilegalidade”.
Documentos oficiais vistos pela BBC citam a empresa Rare Zoo Logistics, com sede no Panamá, como a “vendedora”. Uma fatura mostra que o valor da transação é de US$ 1.034.000 (cerca de R$ 5,2 milhões).
O inquérito policial afirma que os donos da empresa, Anna Melino e Eric Bernier, estiveram no Brasil entre 8 e 14 de novembro de 2021.
As girafas chegaram em 11 de novembro.
Ambos não responderam a repetidos pedidos de entrevista da BBC.
Anthony Wilbraham, proprietário da Impex Wildlife, com sede na África do Sul, aparece na fatura como “transportador/exportador” de “18 girafas vivas”.
Os investigadores dizem que a Impex foi responsável pelo recolhimento dos animais perto de Joanesburgo.
Wilbraham não respondeu aos pedidos de entrevistas da BBC.
A polícia brasileira não informou se a Rare Zoo ou a Impex estão sob investigação.
Já o BioParque diz que “o exportador apresentou todas as licenças do governo sul-africano, que foram analisadas e também aprovadas pelas autoridades do governo brasileiro”.
O zoológico acrescenta que as empresas “já enviaram vários animais para o Brasil e outros zoológicos e programas de conservação. Ao contratá-los, o BioParque fez questão de cumprir todos os protocolos e aprovações”.
Enquanto a investigação continua, as girafas permanecem em cativeiro.
“Do ponto de vista conservacionista, é trágico para a imagem dos zoológicos (…) e do Brasil, mas principalmente para essas girafas”, diz Roched Seba, do Instituto Vida Livre.
“Eu acredito que zoológicos podem, sim, fazer um trabalho sério para pesquisa e conservação de animais e temos bons exemplos disso em todo o mundo. Mas o que temos aqui, nesse caso, é um cenário de grave sofrimento e desrespeito aos animais, mas também falta de respeito à conservação e transparência no Brasil.”
Fonte: bbc news brasil
Divulgar sua notícia, cadastre aqui!