Quando a polícia entrou na casa, em 28 de dezembro de 2018, encontrou dois gramas de cocaína em uma mesa, duas balanças e comprovantes de depósitos bancários. Na sala estava James Machado Cordeiro, um microempresário conhecido como “Irmão Simpson” e que depois seria apontado pela investigação como um dos chefes da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) no Ceará.
O celular do homem foi imediatamente apreendido. Depois, os policiais vasculharam os contatos e as mensagens que Simpson trocara em grupos de WhatsApp. O material encontrado no aparelho levaria a prisão do empreendedor e de outras 219 pessoas nos meses seguintes, todas sob acusação de pertencerem ao PCC, grupo criminosos que surgiu nos presídios de São Paulo e se espalhou pelo Brasil.
Mas, segundo a Justiça, os policiais da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco) cometeram duas irregularidades que colocaram toda a operação em xeque: invadiram a casa de James Cordeiro sem mandado judicial e não tinham autorização da Justiça para acessar os dados de seu celular.
O resultado do “erro” só chegou em maio deste ano: toda a investigação, prisões e condenações foram anuladas pelo Tribunal de Justiça do Ceará (TJ-CE), levando à soltura do “Irmão Simpson” e mais 138 pessoas.
Desde o início, a operação policial “Aditum 3” foi anunciada como um duro golpe da polícia na facção — uma das três que controlam o crime organizado no Ceará, junto ao Comando Vermelho (CV) e aos Guardiões do Estado (GDE).
Segundo a denúncia do Ministério Público (MP), no celular de Simpson havia um grupo de WhatsApp com 400 membros do PCC. Desses, “240 foram identificados, sendo 46 lideranças, dois suspeitos de ocuparem cargos de confiança e 192 membros”.
Havia até fichas com o nome dos inscritos na quadrilha, apelido, bairro de origem, data do “batismo” na facção, número de matrícula e “padrinhos”. E, nos grupos, supostos integrantes decidiam até se uma pessoa deveria ser assassinada ou não.
Nos meses seguintes, 219 pessoas foram presas e acusadas de integrarem a organização criminosa.
Simpson foi condenado em primeira instância a 12 anos e seis meses de reclusão em regime fechado. Só foi solto neste ano, depois da anulação de todo o processo pela Justiça.
Na denúncia, o MP apontou que ele usava sua “condição de microempresário do ramo de festas e buffet para passar despercebido e se inserir na sociedade”. Ele teria entrado na quadrilha ao ser “batizado” por dois “padrinhos” quando esteve preso em uma cadeia no interior do Estado.
“(Ele) descreveu seu papel na mencionada facção como ‘geral do estado’, que consiste em propagar a disciplina e a ideologia da facção dentro dos presídios e para os integrantes que se encontram soltos. Proclama possuir funções específicas e de destaque”, narra a denúncia.
Segundo a investigação, o réu se comunicava com outros chefes do PCC por meio de conferências telefônicas, pelas quais “são tratados assuntos diversos sobre acontecimentos envolvendo membros da facção, tais como: cobranças de dívidas, batismos de novos membros, atualização de cadastro de membros, e as demais decisões.”
O caso começou no final de dezembro de 2018. A Polícia Civil afirmou que recebeu uma “denúncia anônima” de que um homem conhecido como “Irmão Simpson”, morador de uma casa em uma vila de Fortaleza, era um traficante de drogas e ocupava a função de “conselheiro geral” do PCC no Ceará.
O Ministério Público afirmou que os policiais, ao chegarem ao local, encontraram “os portões da vila e da casa abertos”. Quando entraram, viram um pó branco, duas balanças de precisão e comprovantes bancários que seriam oriundos do tráfico de drogas.
A Constituição determina que a polícia só pode entrar em uma casa com consentimento do morador ou em posse de um mandado judicial. Mas há exceções, como indícios claros de que algum crime está sendo cometido, como um homicídio, ou para prestar socorro.
“Se os policiais tivessem feito campana na frente da casa poderiam ter elementos para pedir um mandado de buscas para a Justiça. Mas eles só disseram que receberam uma denúncia anônima, e isso não é um elemento que justifica a entrada”, explica um defensor público que atuou no caso — ele pediu para não ser identificado nesta reportagem.
Embora o juiz de primeira instância não tenha considerado isso um problema, os desembargadores do TJ-CE concordaram com a tese da Defensoria Pública. “Nesse caso se observa situação de flagrante nulidade absoluta, na medida em que se constata que houve violação injustificada do domicílio do réu”, escreveram.
“Fica evidente que a diligência policial foi originada tão somente em virtude de uma denúncia anônima, não tendo sido mencionada a existência de qualquer investigação para apurar a ocorrência do comércio espúrio na localidade ou para monitorar as ações do acusado”, disseram os magistrados.
Outro ponto crucial foi o celular.
Os policiais encontram Simpson com um aparelho. “O denunciado voluntariamente teria fornecido a senha para acesso às informações nele contidas”, narra a denúncia do MP.
A palavra “voluntariamente” é a chave para entender por que o processo criminal foi anulado quase quatro anos depois.
O juiz de primeira instância considerou que o microempresário de fato forneceu a senha de seu celular aos agentes.
Mas, na segunda, os desembargadores disseram que todos os dados extraídos do aparelho foram obtidos ilegalmente, porque a polícia não tinha autorização judicial para acessar o celular, como manda a lei.
“Eles consideraram que não fazia sentido o réu ter dado sua senha voluntariamente. Por que ele produziria provas contra ele mesmo? A denúncia também não explica em que circunstâncias isso aconteceu”, diz o defensor.
O tribunal então inocentou o microempresário por conta das ilegalidades, o que gerou um efeito cascata nos outros processos que se seguiram.
O argumento seguiu uma teoria jurídica conhecida como “frutos da árvore envenenada”. Ela sustenta que se a prova de um crime foi obtida de maneira ilícita, isso contamina todo o processo e invalida outras evidências — ou seja, uma árvore envenenada só dá frutos envenenados.
“Não é apenas uma elaboração teórica, mas uma determinação expressa do Código Processo Penal”, explica Maíra Zapater, professora de Direito Penal da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
“A lei diz que tudo o que decorre de uma prova ilícita é nulo. Esse é um limite que se coloca para que o Estado investigue um cidadão dentro da lei, que não seja por meio de tortura, por exemplo, ou com invasão de domicílio.”
Mas nem sempre a Justiça brasileira segue essa determinação, segundo defensores e especialistas ouvidos pela BBC News Brasil. Condenações de réus que tiveram suas casas invadidas por policiais sem mandado, por exemplo, costumam chegar a cortes superiores, como o Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ).
“É muito frequente o uso de provas ilícitas nos processos penais no Brasil. Muitas vezes, isso só é discutido quando o processo chega em tribunais superiores. Quando aplicam a lei, todo aquele conteúdo probatório precisa ser refeito”, afirma Zapater.
No caso cearense, os desembargadores disseram que os policiais deveriam ter investigado o empresário antes de entrar na casa dele, e que um pedido de autorização judicial provavelmente seria atendido.
“Teria sido possível obter as provas necessárias validamente para instruir a ação”, escreveram.
Segundo eles, os policiais fizeram uma “investigação especulativa, sem objetivo certo ou declarado, que ‘lançou’ suas redes com a esperança de ‘pescar’ qualquer prova, para subsidiar uma futura acusação.”
O Ministério Público não recorreu da decisão, e o processo foi encerrado.
Em nota à BBC News Brasil, a Polícia Civil do Ceará afirmou que a operação “Aditum 3” respeitou “as normas do Código de Processo Penal, através de diligências policiais, levantamentos de campo e constatação de denúncias sigilosas da população.”
E continuou: “Cabe destacar que o argumento utilizado pelo Poder Judiciário se baseou em um entendimento, ainda não consolidado e vinculante, que somente passou a ser utilizado no início deste ano”.
Na denúncia, o MP acusou Simpson de participar dos chamados “tribunais do crime”, quando membros de facções decidem em conjunto qual seria a punição para alguém.
Em uma das conversas, Simpson e outros homens discutiram se um rapaz deveria ser assassinado — ele fora acusado de estuprar uma mulher na periferia de Fortaleza. Depois do apelo da mãe do jovem e de um morador do bairro, eles desistiram de cometer o crime.
Em outra discussão, supostos integrantes do PCC, entre eles o microempresário, foram cobrados por uma mulher cujo marido havia sido assassinado por criminosos da quadrilha rival, os Guardiões de Estado. Ela pedia proteção à família, que estava sendo ameaçada.
Relatos como esses e outros dados do celular de James Machado Cordeiro levaram a prisão dele, de 216 homens e mais três mulheres.
A Justiça dividiu os processos em grupos de 10 a 15 réus, mas todos foram absolvidos de serem membros da facção depois da decisão sobre Simpson em maio deste ano. Essas ações secundárias eram os “frutos” da “árvore envenenada” do processo anterior — ou seja, eles foram anulados pela Justiça.
Ao todo, 138 pessoas foram soltas nos últimos meses — o restante cumpre penas por outras condenações.
Quando foram detidos, todos prestaram depoimento à polícia. A grande maioria já tinha cumprido pena em alguma prisão do Ceará — grande parte das cadeias do Estado nordestino é dominada por alguma facção.
Mas a maioria negou ter ligação com a quadrilha, segundo os testemunhos anexados ao processo. Outros disseram que só entraram para a facção para ter proteção nos presídios — um deles relatou que foi obrigado a se filiar, pois “em caso contrário, seria morto.”
Um dos acusados, por exemplo, afirmou que o PCC não fazia grandes exigências para batizar novos membros no Ceará. “Só pediam o nome completo, o bairro, e a caixinha”, disse.
“Caixinha” é a contribuição que os integrantes têm de pagar mensalmente. Segundo os depoimentos, a taxa variava entre R$ 20 e R$ 30, mas o valor “dependia da situação financeira do preso”.
Outro réu contou ter conhecido membros do PCC ao ser mandado para um presídio dominado pela organização. “A depender da cadeia onde você entra, vai para um lado ou para o outro”, disse, em referência às outras facções. Mas ele negou a filiação. “Eles exigem que você mate, roube. Falam um monte de baboseiras para te convencer”, disse.
Em outro caso, um homem reconheceu sua inscrição, mas disse que isso não rendia muito dinheiro. O que ganhava com o tráfico de drogas só “servia para a subsistência” e para criar uma filha bebê, disse. Embora o PCC exigisse 30% de seu lucro, “não pago nada, porque não sobra nada.”
Já uma mulher, mãe de um bebê nascido um mês antes de sua prisão, contou ter feito parte da quadrilha por alguns meses por ordem do ex-marido, que a obrigava a transportar drogas.
“Eu fugi para outro bairro, pois não aguentava mais fazer tudo o que ele mandava. Ele me ameaçou de morte. Fugi dele e da facção”, relatou.
Para um defensor que atuou nos processos, a investigação e a denúncia do MP não conseguiram demonstrar como cada um dos acusados atuava na organização.
“Não ficou provado qual era o papel de cada um, quais crimes eles cometeram, o que eles faziam dentro da facção…”, disse.
Para outra defensora, que também pediu anonimato, “basicamente, as pessoas foram acusadas porque estavam na lista de contatos do empresário. Em alguns casos havia fotos com eles fazendo símbolos e gestos em alusão à organização, mas não havia outras provas robustas para condenar. O MP sequer recorreu”, afirma.
Em nota à reportagem, a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Ceará afirmou que a operação Aditum 3 “foi fundamental para a desarticulação da estrutura de uma organização criminosa e as capturas de seus integrantes envolvidos em homicídios, tráfico de drogas, associação para o tráfico e lavagem de dinheiro no Estado.”
O PCC divide e disputa o controle do crime organizado no Ceará com outras duas facções, o carioca Comando Vermelho e a local GDE — essa última surgiu em 2016, em contraposição aos dois grupos nacionais.
Nos últimos anos, houve episódios de violência atribuídos às quadrilhas, como assassinatos em série, além de ataques a ônibus e a prédios públicos.
Segundo Luiz Fábio Paiva, coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (UFC), as facções atuam em diversas frentes no Estado: tráfico de drogas e de armas, roubos de carga, assaltos a bancos, venda de serviços em bairros da periferia e extorsão de comerciantes.
“Já tivemos períodos de enfrentamento entre essas facções, gerando violência e assassinatos. Mas hoje há consolidação dos grupos nacionais, pois a facção local, a GDE, não teve força e estrutura para se tornar hegemônica como pretendia”, diz.
Ele explica que há diferentes níveis de vinculação às organizações — pessoas de fato envolvidas com ações criminosas e outros que “vestem a camisa” por proteção ou proximidade geográfica.
“Há pessoas que se dizem do PCC porque moram em um bairro controlado por ele, mas isso não significa que elas tenham uma ligação estreita com o grupo, e que participam ou planejam atividades criminosas. Funciona mais ou menos como vestir a camisa de uma torcida organizada”, diz.
“Há outros que entram para se proteger na cadeia ou mesmo no território onde vive. Às vezes a pessoa se filia para não ser assassinado por membros da própria facção. Ou seja, elas vendem proteção contra elas mesmas”, afirma.
Em nota à reportagem, a Polícia Civil cearense disse que, nos últimos quatro anos, “um total de R$ 187 milhões em bens pertencentes a organizações criminosas foram confiscados, o que fortalece o trabalho de descapitalização desses grupos, por meio das ações de inteligências e de investigação.”
Segundo a pasta da Segurança Pública, o número de homicídios diminuiu 18,3% no Ceará no ano passado em relação a 2020. Ao todo, 3.299 pessoas foram assassinadas no Estado em 2021.
Fonte: bbc news brasil
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