No século XVIII, o filósofo francês Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) desenvolveu o conceito do “bom selvagem”, segundo o qual o ser humano nasce sem propensão a praticar o mal, é corrompido à medida que se insere na sociedade e, para retornar a seu estado natural, deve pensar no bem-estar do próximo antes do próprio. Sua reflexão contribuiu para elaborar um sentimento vastamente aclamado, embora nem tão amplamente experimentado: a satisfação que toma conta do indivíduo quando ele ajuda a aliviar as dificuldades de outra pessoa. O prazer de ajudar não conhece limites — vai desde o encarregado da faxina que acha uma carteira recheada e a devolve até as doações em série de MacKenzie Scott, a ex-mulher de Jeff Bezos, que já encaminhou à filantropia 12 bilhões de dólares, dos 60 bilhões que amealhou ao se divorciar do dono da Amazon há três anos. Agora, a ciência mostra que fazer o bem, além de dar contentamento, tem outro efeito colateral importante à saúde física de quem o pratica.
Um recente estudo realizado por pesquisadores da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, mostra que ajudar o próximo resulta em uma série de benefícios específicos para o corpo e a mente. A equipe apresentou um teste de critérios morais a 1 209 adultos, em que respondiam sim ou não a questões como “Estou disposto a enfrentar dificuldades para fazer o que é certo”, “Uso os meus pontos fortes para ajudar os outros” e “Estou disposto a abrir mão da minha felicidade momentânea para colher bons frutos no futuro”, e aplicou sobre as respostas uma escala de zero (“Não tem nada a ver comigo”) a 10 (“Tem tudo a ver comigo”). Em seguida, analisou durante um ano os pedidos de consultas, exames e tratamentos das mesmas pessoas a planos de saúde. As conclusões foram reveladoras.
Aqueles que relataram traços consistentes com a prática de atos solidários, com respostas mais próximas do 10, apresentaram até 50% menos probabilidade de sofrer de depressão, um dado expressivo. Ajudar os outros com vistas a longo prazo, sem uma retribuição imediata, resultou ainda em menor chance de desenvolver ansiedade. Por fim, quanto maior a pontuação dos entrevistados, menos propensos eles eram de sofrer doenças cardiovasculares. “Nosso objetivo era encontrar fatores positivos não convencionais capazes de influenciar a saúde e o bem-estar. Foi reconfortante descobrir que, quando cooperamos para o bem do outro, também contribuímos para nosso próprio bem-estar”, afirma a pesquisadora polonesa Dorota Weziak-Bialowolska, uma das autoras do estudo.
Esses resultados corroboram conclusões obtidas em estudos anteriores envolvendo o impacto positivo da prática do bem. Com financiamento do Instituto Nacional de Desordens Neurológicas e Doenças Cerebrovasculares americano, os brasileiros Ricardo de Oliveira Souza, neuropsiquiatra, e Jorge Moll Neto, neurocientista, submeteram candidatos a trabalhos voluntários a uma ressonância magnética no momento em que decidiam se iam ou não participar de uma ação. Eles descobriram que o ato de fazer o bem ativou regiões cerebrais relacionadas ao prazer e aos sentimentos de apego e pertencimento. A estudante de comunicação Juliane Ramos, 25 anos, segue a tradição da família e realiza trabalhos voluntários desde a adolescência. “A gente ganha mais do que as pessoas que estão sendo ajudadas. Essa sensação me deixa renovada”, conta ela, integrante do grupo Eu Me Importo com Você, que distribui quentinhas a moradores de rua no Rio de Janeiro. “Realizar boas ações acaba tendo um efeito bumerangue que traz benefícios para a mente”, confirma a neuropsicóloga Adriana Fóz.
À luz da psicanálise, o lado menos desprendido da disposição de ajudar o próximo é a sua aproximação de uma ação narcísica: quando se põe em marcha uma atitude altruísta, o inconsciente busca se sentir amado e aprovado pelos outros. “É frequente a sensação de que, quando fizermos o bem a alguém, seremos recompensados na mesma medida”, explica Paula Peron, professora de psicologia da PUC-SP. A definição de fazer o bem, claro, não se limita a dar dinheiro e engrossar o voluntariado, mas está relacionada a padrões morais como honestidade, responsabilidade, respeito e empatia. “Eu procuro sempre estar disponível a quem precisar, mesmo que para isso deixe minhas próprias questões de lado, e busco pensar no outro antes de pensar em mim”, afirma o vendedor Matheus Wanderosch, de 26 anos. As novas pesquisas podem servir de impulso para mais gente sair da zona da comodidade e se mexer para ajudar quem precisa.
Publicado em VEJA de 2 de novembro de 2022, edição nº 2813
Fonte: veja.abril.com.br
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