Sete federações de futebol de países classificados para a Copa do Mundo já manifestaram apoio à proposta de um fundo de compensação para trabalhadores imigrantes que morreram ou foram vítimas de abusos nos preparativos do evento no Catar — e nenhuma das federações é da América Latina.
O fundo, idealizado por várias ONGs internacionais, recebeu a adesão das federações dos Estados Unidos e de seis países europeus (Bélgica, França, Inglaterra, Alemanha, Holanda e País de Gales).
O fundo proposto pode chegar a ao menos US$ 440 milhões (cerca de R$ 2,3 bilhões), o equivalente à soma de todos os prêmios a serem dados às seleções competidoras da Copa, e seria direcionado para trabalhadores que sofreram abusos aos seus direitos ou aos familiares daqueles que morreram nos preparativos do evento.
ONGs como a Human Rights Watch (HRW), Anistia Internacional e FairSquare cobram a Federação Internacional de Futebol (Fifa) e o governo do Catar pelo financiamento do fundo. Nenhum dos dois concordou até agora com a proposta das ONGs, mas representantes da Fifa já afirmaram que a entidade está estudando formas de compensação para trabalhadores imigrantes que atuaram na Copa.
Segundo o escritório da ONG HRW no Brasil, uma carta pedindo apoio à iniciativa foi enviada à Confederação Brasileira de Futebol (CBF) em setembro deste ano e nunca foi respondida.
“O que a gente tem visto na América Latina é um silêncio vergonhoso em relação ao que está em jogo nessa Copa do Catar”, diz Maria Laura Canineu, diretora da HRW no Brasil.
“Nós latinos somos muito apaixonados pelo futebol, mas temos uma dificuldade muito grande de apontar violações graves a direitos humanos relacionadas ao esporte. Acho que a gente tem uma cultura de separação das duas coisas.”
“É uma pena, pela responsabilidade e pelo peso que essas seleções têm ao redor do mundo, especialmente em países de trabalhadores impactados pela construção absolutamente abusiva da infraestrutura da Copa”, completa Canineu, afirmando que o Brasil tem muitos fãs na Índia, Bangladesh e Nepal, origem de muitos dos imigrantes que buscaram trabalho no Catar, inclusive durante a preparação para a Copa.
A diretora da HRW afirma que, no Brasil, uma exceção à regra de “silêncio” que ronda a CBF é uma fala do técnico da seleção masculina brasileira, Tite, que respondeu à pergunta de um jornalista estrangeiro sobre o fundo durante entrevista coletiva em setembro.
“Eu me considero um humanista, acima de tudo”, afirmou, na ocasião, o técnico brasileiro. “Eu gostaria que tivesse sempre um sentido de igualdade social maior, eu gostaria sempre que tivesse um respeito à mão de obra, que seja respeitada e valorizada no seu devido tamanho.”
“Não só no Catar. Lá em São Braz [em Caxias do Sul, RS], onde eu nasci, se for, eu vou apoiar.”
“Em relação ao fundo também? Também”, completou Tite.
Maria Laura Canineu afirma que, apesar a importância da declaração, ela foi “bastante individual” e deveria ser endossada pela CBF.
Desde quarta-feira (16/11), a BBC News Brasil tenta contato com a assessoria de imprensa da CBF via e-mails, telefone e WhatsApp. Até a publicação desta reportagem, as solicitações de posicionamento não foram atendidas.
Anunciado em 2010 como país a sediar a Copa de 2022, o Catar ergueu uma grande infraestrutura para o evento desde então, incluindo sete estádios, um novo aeroporto e novas estradas.
Mas a mão-de-obra empregada nesta expansão, como era de se esperar em um país que tem 85% da sua pequena população composta por imigrantes, foi em grande parte de pessoas de outras nacionalidades.
Dado um histórico de acusações relativas aos direitos humanos e aos direitos dos trabalhadores, a situação de imigrantes trabalhando nos preparativos da Copa foi acompanhada por organizações internacionais.
Em fevereiro de 2021, o jornal britânico The Guardian publicou que pelo menos 6.500 trabalhadores imigrantes da Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka morreram no Catar entre 2010 e 2020.
O jornal chegou a esse número com dados dos governos desses países, mas não foi possível especificar quantas dessas vítimas estavam atuando nos preparativos para a Copa.
O governo do Catar afirma que esses dados podem incluir mortes naturais de trabalhadores e que as fatalidades estão de acordo com o esperado para o tamanho e a para as características demográficas do país, embora tenha escrito ao jornal britânico que “toda vida perdida é uma tragédia e nenhum esforço é poupado na tentativa de evitar qualquer morte” no país. Segundo o país árabe, entre 2014 e 2020 houve 37 mortes de trabalhadores que atuaram na construção de estádios — mas 34 delas não estariam “relacionadas ao trabalho”.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT), por sua vez, compilou dados e afirmou que em 2020 houve pelo menos 50 mortes e 500 ferimentos graves relacionados ao trabalho no Catar — não especificando os números referentes a projetos da Copa. Cerca de dois terços dos ferimentos graves ligados ao trabalho no Catar e três quartos dos ferimentos leves a moderados foram sofridos por imigrantes de três países: Bangladesh, Índia and Nepal.
No relatório, porém, a organização afirmou que há muitas lacunas e divergências nos dados, fazendo com que “ainda não seja possível apresentar um número categórico de lesões ocupacionais fatais” no país.
Mas além dos números de vítimas, o Catar já é há anos monitorado pelas altas temperaturas sob quais os trabalhadores atuam, pelas longas horas de trabalho, pela dedução punitiva de salário e pela extrema subordinação de funcionários imigrantes.
Um símbolo disso foi o sistema “kafala”, que dava aos patrões controle quase total sobre a movimentação e a situação de imigração dos trabalhadores. Embora a kafala tenha sido oficialmente extinta, a Anistia Internacional afirma que alguns resquícios permanecem.
Se sob este regime os trabalhadores antes precisavam da permissão do patrão para deixar um trabalho, hoje eles ainda enfrentam enormes burocracias quando decidem deixar seus postos, segundo a ONG.
Maria Laura Canineu reconhece que, nos últimos anos, autoridades do Catar fizeram reformas que ampliaram as garantias dos trabalhadores, mas afirma que tais mudanças foram “insuficientes, restritas e tardias”.
De acordo com a diretora da HRW no Brasil, o Catar teria todas as condições e documentos para mapear e compensar migrantes vitimados na preparação da Copa.
Além de pedir apoio de um total de 32 federações de futebol, as ONGs que estão reivindicando o fundo também procuraram 14 patrocinadores oficiais do evento. Apenas quatro deles demonstraram apoio à proposta: AB InBev/Budweiser, Coca-Cola, Adidas e McDonald’s.
Em uma carta enviada recentemente às seleções que vão competir, a Fifa pediu “foco no futebol”. A BBC Sport teve acesso ao documento, o qual pede que o futebol não seja “puxado para toda batalha ideológica ou política que exista”.
“Sabemos que o futebol não existe no vácuo e estamos igualmente conscientes de que há muitos desafios e dificuldades de natureza política ao redor do mundo”, diz o texto.
“Na Fifa, tentamos respeitar todas as opiniões e crenças, sem dar lições de moral ao resto do mundo. Nenhum povo, cultura ou nação é ‘melhor’ do que qualquer outro.”
Dias depois da carta da Fifa vir à tona, a CBF publicou um texto com título “Foco no futebol”, afirmando: “Concordamos com o pedido da Fifa para que o principal foco da comunidade desportiva esteja no futebol antes e durante a próxima Copa do Mundo.”
Canineu afirma que a ONG da qual é diretora não defende o boicote e nem que as pessoas deixem de celebrar “um evento tão importante como a Copa do Mundo”.
“A gente entende que o esporte é um lugar propício para respeito, solidariedade, fraternidade e principalmente o respeito à dignidade da pessoa humana. Então o esporte é uma forma muito importante para promover direitos humanos, e por isso que a gente vem desde o começo pressionando a Fifa para que ela incorpore regras mais rígidas de inspeção dos países que vão receber a Copa”, afirma.
“O que a gente está pedindo não é que a CBF pague o fundo com seus recursos, mas pressione a Fifa, que vai lucrar com a Copa do Mundo, para que minimamente dedique recursos para recompensa das famílias que tiveram seus entes queridos mortos por conta da construção da infraestrutura da Copa.”
“As federações (de futebol) também lucram com a Copa do Mundo, e a gente entende que assim como a Fifa, elas também têm obrigações com direitos humanos.”
Fonte: bbc news brasil
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