O relógio marca 0h quando a água quente se torna fria como gelo. O termômetro do lado de fora marca 2°C. Ainda é outono no Hemisfério Norte e os aquecedores não dão conta: dentro de casa mal faz 15°C.
A Alemanha vive o prelúdio de um inverno rigoroso, ainda mais tenso pelas indefinições a respeito da guerra na Ucrânia, por onde passa boa parte do gás natural que aquece a Europa. O fornecimento comprometido encareceu tudo: em novembro, a inflação no país ficou em 10%, depois de um pico de 10,4% em outubro. É a maior série de altas registrada no país em 70 anos, segundo dados do Destatis (Departamento Federal de Estatística).
A redução no abastecimento gera um impacto considerável no cotidiano, já que uma parte considerável das casas alemãs possuem calefação movida a gás. Em alguns casos, a situação encontrada pela administração de prédios é a de cortar o fornecimento por um período de tempo, como por exemplo durante a madrugada.
O mais comum é que a conta de gás venha diluída no aluguel, e o setor imobiliário já registrou um aumento de 1,7% no setor por causa disso. Não é raro, porém, ver casos onde a conta de gás seja paga à parte.
A desenvolvedora de software Fernanda* mora em Neubiberg, na região metropolitana de Munique, cidade que tem o aluguel mais caro da Alemanha. Ainda que os preços de Neubiberg sejam menores, a inflação e o preço do gás geram um impacto forte na conta mensal.
Ela conta que, há poucos meses, recebeu uma carta da companhia de gás para a qual paga um valor à parte pelo uso na casa. Na ocasião, a empresa pediu que os consumidores optassem por aumentar a contribuição mensal, a fim de evitar taxas mais exorbitantes no final do mês. Fernanda optou por dobrar o valor da contribuição mensal para evitar que a conta excedente, a ser recebida em abril do próximo ano, seja mais cara do que o esperado. “É mais fácil que a gente vá pagando aos poucos, em vez de quitar tudo de uma vez”, afirma ela, que tem usado o aquecedor em apenas um cômodo e se vira neste outono/inverno usando roupas mais pesadas dentro de casa.
No passado, Angela Merkel apoiou o projeto do gasoduto Nord Stream 2, que conecta Rússia e Alemanha através do Mar Báltico, em uma extensão de transporte de gás natural de mais de 1.200 km. Muitos apontam a decisão como a principal razão da dependência de Moscou, o que dificultou a tomada de decisão da Alemanha em meio à guerra.
O país, contudo, buscou saídas: entra em vigor em 2026 um acordo com o Qatar para fornecimento de gás natural liquefeito. Apesar disso, as instalações de armazenamento já atingiram 100% da capacidade. De acordo com especialistas, o estoque deve durar poucos meses, mesmo com o racionamento impulsionado por todo o país.
Enquanto a matriz não se altera, para fugir das contas altas de energia elétrica e de gás muita gente tem procurado cidades do interior para passar os meses de frio. Casas antigas e movidas a aquecedor a óleo são uma alternativa para driblar a alta nas contas. O problema é que a inflação também chegou ali: juntas, Rússia e Ucrânia eram responsáveis por 77,2% das exportações de óleo no mundo inteiro, e a interrupção abrupta resultou em um aumento considerável no preço do produto nas prateleiras dos supermercados.
Consumidores que não estocaram óleo antes da explosão da guerra saem em desvantagem. Além disso, projetos de lei pedem redução drástica no uso desses aquecedores para reduzir a emissão de CO2 — iniciativa prevista no pacote de proteção climática que corre até 2030.
O governo federal aconselha, ainda, que caldeiras a óleo com mais de 30 anos, que não sejam movidas por condensação ou baixa temperatura, devem ser substituídas. Ou seja: mais uma equação que gera impacto no bolso. Não há saída fácil.
Antes da guerra, o óleo de girassol custava entre 1,50 e 2 euros. Sempre foi a opção mais popular na cozinha. Hoje ele sai por, no mínimo, 4,90 euros — tão caro quanto o azeite de oliva.
Leonardo Pereira, 24, que saiu de Campinas (SP) para estudar engenharia na Technische Hochschule de Ingolstadt, notou essa alta de forma brusca. Se antigamente a conta semanal com a compra de itens básicos somavam, no máximo, 20 euros, hoje não se gasta menos de 45 euros para adquirir os mesmos produtos.
“Pagar aluguel, gás, transporte e mercado está no limite do meu salário de estudante”, afirma. Descontos no transporte público, aplicados durante o verão, não valem para o inverno. A medida pode ser revista até janeiro, mas há críticas de todos os lados.
A conta tem ficado mais difícil de fechar para os estudantes estrangeiros, que podem trabalhar até dez horas por semana e atender a uma série de pré-requisitos de renda para poder permanecer no país. Leonardo driblou a necessidade de comprovação de renda por ter uma proposta de trabalho como estagiário de TI da Siemens em Munique, em regime híbrido. Ainda assim, o aumento de preços o fez trocar a capital da Baviera por Ingolstadt para economizar com aluguel. “Meu aluguel na cidade custa 500. Em Munique, eu gastaria 800, sem luz nem internet”, explica ele.
A designer paulistana Isabella Tatulli desembarcou em Munique em 2019 com uma vaga de estágio. Hoje ela trabalha como designer UX, mas a realidade das empresas mostra um cenário infeliz: além da disparidade salarial entre homens e mulheres, uma das maiores pautas do feminismo alemão, ela não viu a proporção salarial acompanhar a explosão inflacionária. “Mesmo com os meus pedidos de manter o salário, ele acabou sendo reduzido”, explica ela.
Como tantos outros moradores, Isabela passou a economizar no dia-a-dia. O clima gelado e sem perspectiva de melhora no emprego a levou a procurar algo fora do país. Em breve, Munique cederá lugar a Amsterdã, na Holanda, onde Isabella sonha com mais oportunidades. Para brasileiros que desejam se mudar para a Alemanha, ela aconselha: “Pesquise o preço das coisas e o salário médio da profissão, entenda como funcionam as taxas, como descontos no salário, e traga economias. Tudo isso ameniza o susto”.
Até o popular mercado natalino está, como os próprios alemães dizem, “mais escuro”. Após dois anos de festas canceladas por causa da pandemia, a expectativa pelo evento foi novamente frustrada pela crise.
Os estados agem de forma independente para conter o alto consumo de energia das luzes de Natal em estabelecimentos, monumentos e tendas, que vão desde a venda de pequenos artigos natalinos à comercialização de comidas típicas e do famoso “glühwein” — uma espécie de vinho quente muito consumido no país no inverno. Em Munique, um copo da bebida custava 3,50 euros em 2019. Hoje, os preços giram em torno de 5,90 euros, mostrando que até alcançar a embriaguez no frio se tornou mais complexo.
Fonte: uol.com.br
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