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O que pode acontecer no Brasil se os EUA derem calote pela primeira vez na história?

País vive impasse para renegociar limite da dívida e autoridades falam que, se nenhum acordo for fechado logo, o Tesouro ficará sem dinheiro no começo de junho. Especialistas avaliam que um calote é improvável, mas que causaria um colapso, impactando, inclusive, a inflação, os juros e a taxa de câmbio no Brasil.

O assunto que tem dominado os noticiários econômico e internacional nas últimas semanas é a renegociação do teto da dívida dos Estados Unidos.

O país tem um mecanismo que foi criado em 1917 e serve para limitar a quantidade de dívidas que o governo pode ter em um ano fiscal, que por lá vai de outubro a setembro. O problema é que, ainda em janeiro, os EUA chegaram ao limite estabelecido para este ano fiscal: de US$ 31,4 trilhões.

Agora, o presidente Joe Biden e os seus aliados do partido democratas travam uma “batalha” com os republicanos, que são maioria na Câmara dos Deputados, para conseguir aumentar o teto deste ano.

É uma luta contra o tempo, já que, em pouco mais de uma semana, o governo corre o risco de ficar sem recursos para arcar com dívidas que vencem no começo de junho.

Parece uma realidade distante, mas é um consenso entre todos os especialistas ouvidos pelo g1 que, caso os partidos não cheguem a um acordo para elevar o teto e permitir que o governo arque com suas despesas, as consequências seriam “catastróficas em nível global”, como pontuou Matheus Pizzani, economista da CM Capital.

No Brasil, inclusive, os efeitos seriam rapidamente sentidos, com destaque para:

  • 💸 a forte desvalorização do real perante outras moedas;
  • 📉 a queda também da bolsa de valores brasileira;
  • 💲 uma rápida volta da pressão inflacionária;
  • 📈 a elevação e manutenção das taxas de juros em patamares altos;
  • ❌ uma possível desaceleração da atividade econômica, que poderia resultar em um período de recessão.

Entenda mais detalhes abaixo.

O que está acontecendo nos EUA?

De acordo com Alexandre Espirito Santo, economista-chefe da Órama e professor do Ibmec, quando o governo americano chega no teto do endividamento, como agora, o mecanismo desenvolvido em 1917 provoca, em tese, um “fechamento” das repartições do governo.

“Em outras palavras, ele fica sem possibilidades de cumprir suas obrigações, desde as mais básicas, como pagar salários de funcionários e manter funcionando atividades essenciais, até emitir novas dívidas. Explicando de forma simples, o governo americano pode ficar inadimplente”, afirma Espirito Santo.

O professor destaca que, nos últimos 70 anos, o teto já foi elevado em mais de 70 vezes, tanto em governos democratas, como o de Biden, quanto em mandatos republicanos, como o do ex-presidente Donald Trump.

Thomas Gibertoni, analista de cenário macroeconômico na Portofino, destaca que, desde 2010, o endividamento americano vem crescendo de forma mais recorrente e exigindo aumentos expressivos do teto — o que mostra que o caso atual não é uma novidade.

Com a elevação do teto, há a permissão para a emissão de novos títulos de dívida — as Treasuries, títulos públicos americanos, que são considerados os investimentos mais seguros do mundo.

Mas, para conseguir elevar esse teto, é necessária a aprovação do Congresso e aqui entram alguns pontos importantes:

  • o presidente Joe Biden é democrata, assim como a maioria do Senado, mas a Câmara dos Deputados é dominada por republicanos;
  • a diferença de cadeiras entre os republicanos e democratas em ambas as casas do Congresso é muito baixa, o que torna todas as disputas muito polarizadas;
  • os democratas querem elevar o teto da dívida com a mesma faixa de despesas que já existe, para manter os benefícios sociais à população, enquanto aumentariam a receita com a cobrança de impostos mais expressivos de empresas e pessoas mais ricas;
  • já o republicanos são radicalmente contra ao aumento de impostos para empresas e mais ricos e são contra manter a faixa de despesa atual com os benefícios sociais, aumentando apenas os gastos com militares;
  • com essas desavenças, os partidos ainda não conseguiram chegar a um acordo que agrade os dois lados para autorizar a elevação do teto das dívidas.

Desde 19 de janeiro deste ano, quando foi atingido o limite de US$ 31,4 trilhões, o governo vem adotando algumas “medidas extraordinárias, uma vez que não tem a autorização para elevar (sozinho) o endividamento público”, explica Marcos de Marchi, economista-chefe da Oriz Partners.

Mas chegou o momento em que essas medidas já não são mais suficientes, e até agora não há sinais de quando os partidos chegarão a um acordo. Na tarde da última terça-feira (23), representantes das negociações disseram estar fazendo “pequenos progressos”, mas nada que levasse a uma definição.

Na opinião de todos os especialistas ouvidos pela reportagem, a renegociação do teto da dívida americana virou uma briga política para atender aos objetivos dos partidos, o que pode ser perigoso conforme se aproxima o prazo de vencimento das próximas despesas do governo.

Quais seriam os impactos no Brasil?

Gibertoni, da Portofino, comenta que, se não chegarem a um acordo para elevar o teto até a data dos próximos pagamentos e os EUA não honrarem com suas dívidas, os primeiros impactos seriam sentidos nos ativos de risco.

“Afinal, se o país mais seguro do mundo deu calote, o que esperar dos emergentes?”, questiona Gibertoni”.

O economista da Oriz Partners compartilha da mesma visão e complementa que um calote poderia levar o dólar a perder valor diante das principais moedas de economias desenvolvidas. As de países emergentes, por outro lado, deveriam passar por uma depreciação, já que são consideradas bem menos seguras.

“Moedas como euro, iene e o franco suíço poderiam ser um refúgio no mercado de moedas. O real e as demais moedas emergentes tenderiam a desvalorizar fortemente”, diz Marchi.

Haveria, ainda, a possibilidade de que os países passassem a elevar de forma significativa suas taxas de juros.

Os próprios EUA deveriam promover esses aumentos, tentando tornar os seus títulos públicos mais atrativos com uma maior rentabilidade, em um esforço para que a maior economia do mundo consiga arrecadar mais dinheiro e se refinanciar.

Marchi destaca que “uma coisa é o governo não honrar o pagamento de uma dívida porque não tem saúde financeira para tal e outra coisa é não pagar o compromisso assumido porque não se chega a um acordo político”. Nesse sentido, ninguém questiona a capacidade americana de pagar as dívidas e, mesmo com o calote, os títulos continuariam atrativos, ainda mais se os juros subissem.

Neste contexto, outros países desenvolvidos também poderiam subir suas taxas e, principalmente, os emergentes, para tentar competir e atrair capital estrangeiro.

E nesse ponto entram os impactos socioeconômicos. Pizzani, da CM Capital, e Espirito Santo, do Ibmec, comentam que o “colapso social seria muito grande”, com consequências “de dimensões catastróficas”.

Cabe destacar:

  • forte pressão inflacionária sobre o Brasil, já que o país trabalha com diversos produtos importados e, com a desvalorização do real perante outras moedas, esses produtos ficariam mais caros;
  • a manutenção ou o possível aumento da Selic, taxa básica de juros, que hoje já está em 13,75% ao ano, para tentar conter parte da disparada dos preços;
  • os juros também poderiam ser mantidos elevados para atrair investidores estrangeiros em um cenário de maior aversão ao risco, em que seria necessária uma rentabilidade muito maior para ganhar dos ativos de países desenvolvidos e trazer capital para cá, em uma tentativa de valorizar o real;
  • com inflação elevada e juros altos, a atividade econômica nacional poderia desacelerar, já que os custos para consumir ficariam mais caros;
  • o Brasil também poderia exportar menos, já que os EUA são um dos principais compradores de produtos do país e, com os problemas financeiros, deixariam de importar;
  • com tal cenário, o Brasil poderia não quebrar com um calote na dívida americana, mas as chances de passar por um período de forte desaceleração e possível recessão seriam grandes.

Há chances de que os EUA deem um calote nas dívidas?

Outro consenso entre todos os especialistas é que as chances de um calote na dívida americana são praticamente mínimas e que, apesar da renegociação do teto ter se tornado uma briga política, não é interessante para nenhum dos partidos deixar que os EUA fiquem inadimplentes.

Marchi, da Oriz Partners, destaca que há anos a “regra” para a renegociação tem sido que os partidos não cedam tão fácil, principalmente quando o presidente do país está na mão de um partido e o Congresso é comandado pela oposição.

“O caso mais emblemático aconteceu em 2011 [no governo de Barack Obama, quando a crise de negociação entre Congresso e Executivo levou a Standard & Poor’s a rebaixar a nota de crédito do país pela primeira vez na história, justificando que as diferenças entre os partidos em superar problemas fiscais estavam cada vez maiores”, comenta o economista.

As notas de crédito são dadas por agências de classificação de risco e refletem a capacidade que um país tem de honrar com seus compromissos. O cálculo da nota leva em consideração uma série de fatores — como saúde financeira, conjuntura econômica e históricos de pagamentos, por exemplo, entre outros. Essa classificação costuma ir da nota D (a pior) até a AAA (a melhor).

Ainda assim, governo e oposição, historicamente, sempre chegam a uma conclusão. Thomas, da Portofino, pontua que logo um acordo deve ser fechado, provavelmente com os democratas aceitando algum nível de redução nas despesas do governo e os republicanos, formas de aumentar a arrecadação.

“Não sei se é torcida de minha parte, mas espero que haja uma solução razoável, mesmo que seja aumentar temporariamente o teto da dívida. As desavenças políticas não podem colocar a principal economia do mundo à beira do precipício, tragando as demais juntas”, finaliza Alexandre Espirito Santo.



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