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Racismo, modernização e falta de representatividade: especialistas analisam minoria negra na música sertaneja

Entenda como história da música caipira e sertaneja no Brasil foi marcada por embranquecimento dos ritmos e das imagens. Como mudar esse cenário?

O sertanejo domina a lista de músicas mais tocadas nos rádios e plataformas de streaming há alguns anos. Contudo, esses rankings raramente têm artistas negros.

Desde 1996, o top 10 de músicas mais tocadas do ano nas rádios não conta com um representante negro do sertanejo. Naquele ano, João Paulo e Daniel apareceram na terceira posição com “Estou apaixonado”. Um ano antes, a dupla estava na sexta colocação com “Eu me amarrei”.

Em 1997, João Paulo morreu em um acidente de carro. Anos depois, Daniel fez diversas revelações sobre o preconceito que assistiu de perto com João Paulo. Incluindo a constante sugestão para que o cantor trocasse de dupla antes de eles estourarem.

“Sugeriram que o Daniel se juntasse ao Marcelo Aguiar — que era cantor também, foi deputado, e hoje tá da igreja — lá no começo porque eram dois bonitinhos branquinhos e fazia mais sentido”, contou, ao g1, o jornalista André Piunti, especialista em música sertaneja.

Rick, parceiro de Renner, revelou que passou por muitas situações de racismo. “A gente viveu situações delicadas. Eu vivi, sim, situações de preconceito”, disse o cantor no canal de Piunti no YouTube, citando o dia em que uma fã foi ao show da dupla e pediu uma foto para Renner. Na hora em que o cantor chamou Rick para se juntar ao clique, a mulher disse “que não gostava de negros”. Renner partiu em defesa do amigo e, então, recusou o pedido da foto.

Rick ainda relembrou uma história vivida e relatada a ele por João Paulo, na qual o clube da elite de uma cidade contratou o show de João Paulo e Daniel. “O cara comprou um show, mas ele não os conhecia. Na época, não tinha tanta imagem, não divulgava tanto. E quando João Paulo e Daniel chegaram, o cara falou que se tivessem falado que tinha um negro na dupla, ele não teria comprado.”

Rick é um dos poucos nomes negros na música sertaneja atual ao lado de outros como Kleo Dibah e Thácio (dupla de Lucas Reis). Ao longo da história da música caipira e sertaneja, outros artistas aumentaram essa lista: Tião Carreiro, Cascatinha & Inhana, Pena Branca & Xavantinho, João Mulato e as Irmãs Barbosa.

Ainda que existam representantes negros, a proporção é pequena dentro um cenário majoritariamente branco. Mas por que essa lista é tão pequena? Sempre foi assim ou algo mudou ao longo dos anos?

Em um artigo sobre “a música sertaneja e o enigma racial brasileiro”, Marcos Queiroz levantou a hipótese de que o sertanejo teve que “embranquecer” para se nacionalizar. Marcos é professor do Instituto Brasiliense de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e membro do Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação — CEDD/UnB, do Maré.

O g1 conversou com especialistas que falaram de outros motivos que explicam a minoria negra na música sertaneja brasileira:

  1. O apagamento das raízes negras da música sertaneja;
  2. O embranquecimento gerado pela modernização da música sertaneja;
  3. A falta de representatividade – sem estrelas negras, os mais jovens não têm em quem se espelhar e não se reconhecem no ritmo.

1) Apagamento das raízes negras

Para Luiz Antonio Guerra, doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo, a ausência de nomes negros na música sertaneja é reflexo do apagamento das raízes negras da música caipira. E esse cenário não é atual.

“Isso vem lá de trás. Vem lá da música caipira, na verdade, que sempre foi marcada por um esquema de modernização. Desde 1929, com Cornélio Pires, ela está entre esses polos do caipira, da tradição e da modernização”, afirma o professor. Em sua tese de doutorado, ele analisou o desenvolvimento histórico e social da viola e cultura caipira.

Luiz explica que, nesse processo de modernização e de segmentação dos gêneros da música popular brasileira, a música caipira começou a receber apoio da intelectualidade paulista na década de 1930. A partir daí, ritmos que faziam parte de sua história e que são heranças africanas (como o lundu, o moçambique, a congada, o jongo e o samba) foram sendo apagados, deixando os traços da moda de viola, do cururu e o cateretê.

“Antes, tudo era música regional, música sertaneja. E esse processo de segmentação vai falando: ‘ah, isso aqui é da música caipira, isso aqui é samba, isso aqui é nordestino’. Vai dividindo. No começo da fonografia caipira, estava tudo misturado ainda. Essas expressões musicais negras acabam ficando como se fosse do samba carioca ou da música nordestina em toda sua variedade.”

“Essa musicalidade que estava presente nas comunidades caipiras não foram capazes, dentro desse processo de mediação da indústria fonográfica, de se tornar subgêneros da música caipira e, depois, da música sertaneja.”

Segundo Luiz, essa segmentação musical se torna um obstáculo para as pessoas negras. “É mais difícil elas alcançarem a fama, vamos dizer assim. Conforme vai se tornando uma música sertaneja mais modernizada, mais nacionalizada, mais prestigiada, mais rica, como tudo na sociedade brasileira, vai se colocando obstáculos para essa população negra acessar esses espaços.”

André Piunti reforça a tese do professor: “Se você for buscar lá a origem da música caipira, dos ritmos que a formaram, eram batidas influenciadas por portugueses, por indígenas e por negros africanos que vinham para cá. E aí no começo da música como música caipira, eles vão sendo tirados à medida que a música vai ficando pop.”

“A indústria vai trazendo a música sertaneja para dentro e vai colocando a imagem do negro de fora. Alguns apareceram, mas a proporção é bizarra.”

Obstáculos na indústria fonográfica

Para Piunti, a modernização e a indústria fonográfica estão entre as culpadas pelo embranquecimento do sertanejo. “Quando a música passa a fazer parte da indústria que coloca o LP na gôndola da loja, que leva o artista para as televisões, ou que faz a dupla rodar fisicamente para conhecer os locais, as gravadoras e alguns executivos já cortavam por serem negros.”

O jornalista ainda contou a história que ouviu de um artista, que prefere não ser identificado, relatando que “a moça da gravadora falou que ‘não dava’, assim nesses termos mesmo, para colocar dois ‘neguinhos’ na capa de um disco e vender numa loja.”

Um caso interessante é o da dupla Cascatinha & Inhana. Na década de 1950, o som era mais importante do que a imagem. “Com certeza, muita gente que consumiu ‘Índia’ e ‘Meu Primeiro Amor’, em 1952, ouviu muito sem saber a cara deles.”

Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos e professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Rogério da Palma também fala sobre as mudanças geradas ao longo do processo de modernização e profissionalização da música.

“É importante pensar como a modernização da indústria musical, na qual a imagem do cantor é cada vez mais explorada, abriu novos caminhos para a reprodução das desigualdades raciais. O racismo possui uma dimensão estética”, analisa Rogério, que é autor do livro “Racismo e Liberdade: relações inter-raciais e a construção da (sub)cidadania negra”.

“Modernizar e desenvolver sempre foi, mesmo que muitas vezes de maneira implícita, sinônimo de embranquecimento”, completa o professor.

Dentro disso, Luiz Antonio Guerra relembra que mesmo ícones negros do início da música caipira e sertaneja, a exemplo de Tião Carreiro, passaram por um branqueamento para terem suas imagens divulgadas em capas de disco.

“Você vai ver eles, vamos dizer assim, menos negros, muito entre aspas, na imagem que é passada na capa dos discos do que na que você vê deles ao vivo. É um processo racista que já existia na indústria fonográfica há um tempo.”

‘Sertanejo é antimilitância’

Para Marcos Bernardes, o Marcão do portal Blognejo, Tião Carreiro era um dos maiores ícones da música sertaneja e não fazia nenhum discurso em defesa dos negros. “Ao contrário, ele cantava músicas que de certa forma tratavam o negro de forma pejorativa. Um dos grandes sucessos do Tião Carreiro, ‘Preto de alma branca’, é uma das músicas que mais fala de forma velada sobre o racismo. Só o título da música já é racista.”

“Não existia um discurso antirracista no sertanejo. A maioria das músicas falavam dessa forma dos negros. Tratavam como um racismo velado. Então eu acho que os próprios negros na música sertaneja não viam a importância deles nesse ponto.”

A ausência desse discurso segue até hoje. Segundo Marcão, se algum artista tentar um movimento inverso, muito provavelmente não será aceito pelo mercado do estilo:

“O sertanejo é totalmente antimilitância. Qualquer tipo de militância encontra barreiras no sertanejo.”

“Qualquer tipo de movimento que tenha pouco espaço no sertanejo e que exista um certo preconceito ao longo dos anos só vai se consolidar quando abandonar militância. Não adianta tentar emplacar nada de movimento, porque o sertanejo vai ver isso com péssimos olhos.”

Mas o que pode mudar esse cenário?

Para Marcão, o que poderia mudar esse cenário é o famoso “acertar uma música”, que é quando uma canção se torna um hit e estoura. “A música é sempre mais importante do que a imagem do artista. Alguns artistas não se tocam disso. A maioria dos artistas do top do Brasil não são tão presentes nas mídias em geral.”

“O artista negro dentro do sertanejo, na hora que acertar o repertório, que acertar na veia, que começar a render, pode ser que dê certo. A galera esperou muito isso com Kleo Dibah. Infelizmente, não aconteceu”, analisa.

“Mas aconteceu com João Paulo e Daniel, que na hora que acertou, consolidou. Aconteceu com Rick e Renner. Pena Branca e Xavantinho acabou se tornando um ícone cultural porque tiveram uma importância não só no sertanejo, mas quando eles regravaram ‘Cio da Terra’, por exemplo, eles foram abraçados pela MPB.”

Para Piunti, a concorrência segue injusta. “Passando tempos em Goiânia, eu vejo que tem [negros tocando em bares e baladas]. Só que o problema é a proporção. Não é 10 pra 1. É 50 pra 1. Então é mais um concorrente ali. Aí fica muito cruel.”

Para ele, o “sertanejo precisa da sorte de um aparecer para puxar uma fila”. “Como a gente deu sorte da Marília aparecer e, aí, veio uma galera junto”. A cantora, que morreu em 2021, encabeçou um time de mulheres e o movimento feminejo, após décadas de preconceito contra mulheres dentro do sertanejo.

A afirmação de Piunti levanta o ponto da representatividade, já abordado pela atriz e produtora fluminense Jeniffer Dias, quando ela interpretou a cantora sertaneja Thamyres, na série “Rensga hits!”, em 2022. “A gente não está acostumada a ver sertanejo preto. Então eu não tinha muito isso de escutar sertanejo porque não me representava muito”, lamentou Jennifer.

Alguns nomes de artistas negros em ascensão que estão em destaque atualmente no cenário sertanejo são os cantores Junior Marques, David Henrique e Diogo Henrique. Junior, aliás, já cantou algumas vezes ao lado de Gusttavo Lima, incluindo algumas edições do festival “Buteco”.

“Tenho certeza que vindo um, vai ter muita gente interessada que está escondida”, diz Piunti. “O jeito de melhorar é cair uma Ana Castela, por exemplo, do nada. E aí, eu acho que bateria no lance da representatividade e conseguiria abrir um mundo diferente, um caminho diferente para você ter negros como tem em qualquer tipo de música.”

Fonte: www.g1.globo.com



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