Os militares conquistaram acesso privilegiado ao poder durante o governo Jair Bolsonaro, com reflexos na definição de políticas públicas e nos rendimentos da categoria, e exerceram um grau de influência na esfera civil do país como não ocorria desde o fim da ditadura militar. Se por um lado a ascendência da caserna sobre a política deverá ser reduzida com a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, por outro, especialistas avaliam que as Forças Armadas seguirão à espreita de uma nova crise grave para retomar a busca por protagonismo.
Na gestão de Bolsonaro —um capitão reformado do Exército— os militares comandaram órgãos relevantes do governo, como Casa Civil, Secretaria-Geral da Presidência, Saúde e Infraestrutura, entre outros. E ocuparam centenas —milhares, a depender da metodologia— de outros cargos no governo.
O jornalista Fabio Victor, autor do livro recém-lançado “Poder camuflado: Os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro”, editado pela Companhia das Letras, compilou levantamentos que buscaram medir o número de militares que ocuparam a gestão pública federal.
O Tribunal de Contas da União (TCU) identificou em 2020 6.157 militares exercendo funções civis na administração pública federal, um aumento de 102,2% em relação aos 2.957 de 2016 —incluindo 1.969 militares inativos contratados para funções temporárias no INSS, além de 1.249 acumulando cargos na saúde e 179 na educação.
Outro levantamento, realizado pela Lagom Data
para o livro de Victor, identificou mais de 5.000 militares em cargos civis no fim de 2021, alta de 43% em relação aos 3.500 no final do governo Dilma Rousseff.
Considerando apenas os mais altos postos comissionados da administração federal —a elite do funcionalismo— 186 diferentes militares da ativa e da reserva ocuparam esses cargos ao longo do governo Dilma, e 717 no governo Bolsonaro até dezembro de 2021, alta de 285% —dos quais apenas um em cada cinco estava em pastas tradicionalmente ligadas à caserna.
O sociólogo João Roberto Martins Filho, professor da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), especialista em Forças Armadas e ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, afirma à DW que os militares participaram do governo Bolsonaro “do começo ao fim” e “não fizeram nenhuma sinalização de distanciamento”.
Uma atuação destacada das Forças Armadas a serviço do governo Bolsonaro ocorreu no processo de organização das eleições deste ano.
Convidados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a participarem da Comissão de Transparência das Eleições, os militares usaram o espaço para semear dúvidas sobre as urnas eletrônicas e fazer exigências à Corte alinhadas aos qestionamentos do presidente sobre a lisura do processo eleitoral.
“Bolsonaro e seu ministro da Defesa, que se revelou um bolsonarista de quatro costados tão logo trocou a farda pelo paletó, aproveitaram [o convite do TSE] para politizar ainda mais uma questão que não diz respeito aos militares e ampliaram a confusão entre política e caserna”, afirma Victor.
Uma diferença crucial entre a atuação dos militares durante o próximo governo Lula e como eles agiram nas gestões anteriores do PT é que agora sabe-se com mais clareza o que a caserna pensa e como ela age para ocupar espaços, diz Martins Filho —como se as máscaras tivessem caído durante o governo Bolsonaro.
Ele cita um documento lançado em maio pelos institutos General Villas Bôas, Sagres e Federalista, em uma cerimônia com a presença do general Hamilton Mourão, vice-presidente da República. Intitulado Projeto de Nação, o documento trazia propostas para o Brasil até 2035 que “representam bem” o que pensa o meio militar.
No documento, há críticas à suposta “ideologização radical no ensino” e à atuação do Judiciário e do Ministério Público “sob um prisma exclusivamente ideológico, reinterpretando e agredindo o arcabouço legal vigente, a começar pela Constituição”.
Outro registro do pensamento militar é uma carta do general Villas Bôas, ex-comandante do Exército, divulgada no fim de semana do segundo turnodas eleições, em que afirmava que a eleição de Lula levaria à “destruição do civismo e ridicularizarão do patriotismo e dos símbolos nacionais”, “desrespeito à Constituição” e “desmontagem das estruturas produtivas que tão arduamente foram recuperadas”.
“Parece uma série de devaneios, mas representam bem o que pensa o militar médio”, diz Martins Filho.
Ele afirma que os militares “não perdoam” o Judiciário por ter anulado as condenações de Lula e, como resultado, permitido que o petista concorresse à eleição.
Mourão expressou esse sentimento em um post no Twitter, no qual reclamou que a população aceitou “passivamente” a “escandalosa manobra jurídica” que anulou as condenações do petista.
Victor também identifica que a crítica ao Judiciário é um elemento comum no meio militar hoje.
“Grande parte dos militares concorda com aspectos do bolsonarismo e faz eco a questões como a crítica ao papel do Supremo e do TSE. Acham que o Judiciário se intrometeu demais, e isso tensiona relações entre o poder civil e a caserna.”
Fonte: g1.globo.com
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