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As mulheres condenadas à prisão por término espontâneo da gravidez

 

Quando Karen acordou em um hospital de El Salvador, ela notou que estava algemada à cama e que havia policiais ao lado do leito.

“Havia um monte de gente ao redor dizendo que eu tirei a vida de meu bebê e que eu iria ‘pagar pelo que eu tinha feito’, conta à BBC.

Ela havia precisado de atendimento de emergência após complicações na gravidez. Mas Karen, que tinha 22 anos à época, acabou acusada de ter realizado o aborto. “Tentei explicar o que tinha acontecido, mas eles não quiseram ouvir. Eu já havia sido julgada e sentenciada ali.”

O país natal de Karen, El Salvador, é um dos lugares com as leis mais duras do mundo contra aborto. O pequeno país da América Central, com 6,5 milhões de habitantes, proíbe todas as formas de interrupção da gravidez, inclusive em casos de estupro, incesto ou risco à vida da mãe.

Acusada de homicídio qualificado, Karen foi condenada a 30 anos de prisão. Ela se tornou uma dentre “As 17”, um grupo de mulheres presas após perderem seus bebês em emergências obstétricas como aborto espontâneo e parto prematuro.

Karen passou seis anos atrás das grades, até ser libertada com outras três mulheres em dezembro de 2021, em meio a uma campanha que atraiu o apoio de celebridades estrangeiras, como as atrizes Milla Jovovich e America Ferrera.

Ao ser presa, Karen já era mãe de um garoto de dois anos. Ela só voltaria a vê-lo quando ele já tinha nove anos.

“Quando me disseram que eu passaria 30 anos na prisão, senti meu mundo desmoronar. Eu pensava em meu filho e me perguntava se sobreviveria a tudo isso.”

O Centro de Igualdade das Mulheres, grupo de advogados baseado nos Estados Unidos que apoia campanhas pela descriminalização do aborto na América Latina, afirma que pelo menos 180 mulheres foram denunciadas ou presas nas últimas duas décadas em circunstâncias parecidas com a de Karen.

‘Eu quis segurar meu filho morto nos braços’

Uma delas era Cinthya, presa em 2009 sob acusação de homicídio depois que seu filho morreu em casa após um parto prematuro inesperado. Ela seria solta em 2019.

Em entrevista à BBC, ela conta que não foi uma equipe de saúde em uma ambulância, mas uma viatura da polícia que respondeu ao chamado de emergência.

Ela desmaiou e, quando acordou no hospital, se viu algemada como Karen.

Cinthya foi levada diretamente do hospital para uma cela de uma delegacia antes de ir a julgamento, sem poder falar com familiares ou ver o filho morto.

“Eu queria segurar meu filho em meus braços, mas não me deixaram. Eles também não deram permissão para que eu fosse ao funeral.”

Ela conta ainda que foi perseguida e atacada na prisão por outras presidiárias por causa da “natureza do crime”.

Karen relata ter enfrentado experiências semelhantes no tribunal, mas teve mais sorte na prisão, pois se viu na companhia de outras mulheres que também foram encarceradas sob acusações de aborto.

“Éramos mais de 10, e algumas das mulheres sofreram abusos de outras prisioneiras. (…) Por isso, formamos um grupo unido para apoiarmos umas às outras.”

Impacto desproporcional

Não é possível verificar que todos os casos de mulheres presas sob essa acusação foram de fato interrupção involuntária da gravidez, mas ativistas dizem que a rígida lei atual acaba resultando na acusação de mulheres que não realizaram o aborto.

Organizações de direitos das mulheres em El Salvador acrescentam que o problema afeta desproporcionalmente mulheres que não têm recursos econômicos para a saúde privada.

Mulheres como Karen e Cinthya.

“As mulheres pobres de El Salvador são as que mais sofrem com a legislação que as estigmatiza e também leva muitas a abortos clandestinos”, explica Morena Herrera, famosa ativista salvadorenha que defende a descriminalização do aborto. “Precisamos libertar essas mulheres presas, mas também precisamos acabar com sua perseguição.”

Também falta apoio jurídico para as mulheres mais pobres, segundo ativistas e as próprias mulheres afetadas.

Cinthya afirma que no momento de seu julgamento ela não tinha permissão para falar no tribunal. Diz ainda que nenhum advogado indicado pelo Estado a visitou ou a informou sobre seu caso enquanto esperava na prisão pelo julgamento no tribunal. Ela nem sabia quais eram exatamente as acusações.

“Foi só no tribunal que descobri que estava sendo acusada de homicídio qualificado”, lembrou ela.

A BBC pediu às autoridades salvadorenhas que comentassem essas alegações, mas não obteve resposta.

De acordo com um banco de dados compilado pela ONG Centro pelos Direitos Reprodutivos, com sede nos EUA, El Salvador é um dos sete países latino-americanos que proíbem totalmente o aborto.

Os outros são: Honduras, Jamaica, Nicarágua, Haiti, República Dominicana e Suriname. Ao redor do mundo, há ao todo 24 países com esse tipo de proibição.

No Brasil, o aborto é permitido em casos de estupro, quando a vida da mãe está em risco ou quando o feto apresenta anencefalia (condição rara que impede o desenvolvimento de parte do cérebro e do crânio).

Uma ‘onda verde’ mais fraca

Nos últimos anos, diversas nações latino-americanas (incluindo México, Argentina e Colômbia) adotaram legislação mais liberal sobre o aborto, após intensa pressão de uma série de movimentos ativistas apelidados de Onda Verde.

“Houve uma maior mobilização nos últimos anos, mas a Onda Verde não chegou a El Salvador com a mesma força que em outros países latino-americanos”, observa Herrera.

El Salvador cogitou legalizar abortos considerados necessários por questões de saúde, como parte de um pacote de reforma constitucional, mas os planos foram arruinados em setembro passado por uma decisão tomada pelo presidente Nayib Bukele.

O líder do país havia defendido essas mudanças na lei do aborto durante sua campanha presidencial de 2018, mesmo dizendo que era completamente contra a criminalização de mulheres que sofreram abortos espontâneos.

E embora pesquisas de opinião indiquem que a maioria dos salvadorenhos apoiaria a legalização do aborto em casos de gravidez inviável ou quando há risco para a saúde da mãe, há forte resistência liderada por políticos conservadores e líderes religiosos.

O Brasil, por sua vez, figura como o quinto menos favorável à legalização total do aborto em um conjunto de 27 países analisados pela edição de 2021 do estudo Global Views on Abortion, da Ipsos.

Apenas 31% dos brasileiros responderam que sim à pergunta: o aborto deve ser permitido sempre que uma mulher assim o desejar?

Na pesquisa, havia outras três opções de resposta: “o aborto deve ser permitido em determinadas circunstâncias, por exemplo, no caso de uma mulher ter sido estuprada”; “o aborto não deve ser permitido em hipótese alguma, exceto quando a vida da mãe estiver em risco”; e “o aborto nunca deve ser permitido, não importando sob quais circunstâncias”. No Brasil, o apoio a estas foi de respectivamente 33%, 16% e 8%, além de 13% que não souberam ou não quiseram opinar.

Apesar de no quadro global o país aparecer entre os menos favoráveis à legalização total do aborto, em 2021 o Brasil chegou ao percentual mais alto de pessoas opinando que o procedimento deveria ser permitido em alguns ou todos os casos. Naquele ano, esse percentual chegou a 64%, enquanto em 2014, o valor foi de 53%.

Para especialistas, a movimentação recente de países vizinhos pode ter levado à maior aceitação da descriminalização do aborto no país.

‘É um ciclo que parece nunca ter fim’

Como resultado da decisão do presidente Bukele, as mulheres que sofrem abortos ainda podem ser presas em El Salvador. No mês passado, uma mulher que sofreu um aborto espontâneo, identificada apenas como “Esme”, foi condenada a 30 anos de prisão.

“Mulheres como eu continuam sendo presas. É um ciclo que parece nunca ter fim”, diz Cinthya. Após ser libertada, ela teve muita dificuldade para encontrar um emprego por causa de seus antecedentes criminais. Mas com a ajuda de uma bolsa de uma ONG ela consegue ganhar a vida vendendo roupas.

Em 2020, ela deu à luz uma menina. “Entrei em pânico quando engravidei, com medo de passar por tudo isso novamente se houvesse complicações. (…) Mas ela nasceu saudável e sem problemas. Ela é minha felicidade.”

Karen diz que ainda se sente julgada pela sociedade, mas está concentrando seus esforços em terminar os estudos do ensino médio que começou na prisão e se reconectar com o filho.

Ela temia que o garoto a rejeitasse depois de uma separação tão longa, mas encontrou um menino amoroso esperando por ela quando finalmente pode voltar para casa.

No entanto, seus pensamentos ainda passam pelas mulheres que continuam na prisão ou outras que podem se encontrar presas por passarem por experiências semelhantes.

Para Karen, contar sua história é uma forma de ajudar essas mulheres. “Tem coisas que ainda me machucam e que nunca vou esquecer. Mas falar sobre elas pode ajudar a evitar que outros casos aconteçam e também ajudar minhas companheiras que ainda estão atrás das grades.”

Fonte: bbc news brasil



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