A importação da cannabis medicinal para humanos avançou no Brasil, mas novas demandas do uso da planta como tratamento estão longe do esgotamento. Apesar do aval científico, médicos veterinários não tem autorização para prescrição. Independentemente disso, os tutores dos animais domésticos tentam brechas e buscam alternativas.
Oficialmente, os médicos veterinários estão em uma situação de insegurança jurídica. A resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) — RDC327 —, que trata sobre a prescrição de produtos de cannabis para fins medicinais, define que a medida é “restrita aos profissionais médicos legalmente habilitados pelo Conselho Federal de Medicina”.
Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) divulgou nota no fim de abril na qual pede que seus profissionais não emitam receitas com medicamentos derivados da cannabis. A história atual para o tratamento de animais lembra o que ocorreu com o uso para os pacientes humanos: uma das alternativas é a busca por processos na Justiça, a judicialização.
Apesar disso, os especialistas entrevistados pelo g1 dizem que as substâncias da cannabis são comprovadamente eficazes contra diferentes condições e doenças dos pets: dor, convulsões, câncer e sinomose, entre outras.
Rodrigo Montezuma, médico veterinário, advogado e assessor da presidência do CFMV, esclareceu ao g1 que a recomendação busca a proteção dos profissionais de serem enquadrados pelo artigo 38 da Lei de Drogas – a prescrição “em desacordo com determinação legal ou regulamentar” pode render de 6 meses a 2 anos de prisão.
“Você vê que a pena é extremamente alta. É um risco para o veterinário, que está em desacordo com a lei ou norma regulamentar. E hoje a gente não tem uma norma regulamentar para uso veterinário. Hoje o médico veterinário está na lei antidrogas”, explicou.
Apesar disso, Aline Luciana Mendes, médica veterinária, disse que não tem medo de dizer que prescreve a cannabis. Ela afirma, com o apoio de Rafael Tiago Mendes, que é advogado e seu irmão, que existem medidas que garantem a ação dos profissionais mesmo em meio à insegurança jurídica.
“Da mesma forma como acontece com as pessoas que buscam fazer o autocultivo para produzir o seu remédio, porque eles também estariam incorrendo na mesma prática do crime de tráfico, a ideia é a mesma: usar um habeas corpus preventivo”, explica o advogado.
Um habeas corpus preventivo é um “salvo conduto” e impede que uma prisão seja feita de forma injusta — como quando há alguma questão de competência relacionada ao juiz, por exemplo, ou quando há nulidade processual.
A veterinária explica que têm feito palestras sobre o assunto sempre ao lado do irmão, uma forma de informar aos colegas como deve ser o processo para garantir mais segurança. Porém, Mendes nem sempre foi tão adepta do tratamento de pets com a cannabis.
Antes de começar a prescrever as substâncias, a veterinária disse que era “preconceituosa”. Ela mudou de ideia após convite para conhecer Antônio Luís Marchioni, o padre Ticão, pároco da Paróquia de São Francisco de Assis, na zona leste de São Paulo. Ele morreu no início de 2021, e foi grande defensor do uso das substâncias da cannabis para tratamento médico.
“Nossa, um padre? Eu fui criada em colégio adventista, mas um padre falar de maconha? Que coisa louca… Fui pagar para ver e saí do ABC Paulista para conhecer a tal igreja. E a educação muda a nossa cabeça, porque eu cheguei lá e vi as mães falando de seus filhos, como a vida deles mudou. Foi de arrepiar”, contou Mendes.
Depois da ida à paróquia, a veterinária decidiu estudar o uso da cannabis e fez pós-graduação sobre o assunto.
“Eu tratei uma gata que usava cinco remédios para controlar as crises convulsivas, ficava internada, e não tinha qualidade de vida. Ela não pulava e não brincava. Em 4 meses, ela deixou de usar todos os medicamentos. A qualidade de vida dessa gata é enorme e a expectativa de vida mudou”, disse.
Com uma alteração óssea na coluna e duas cirurgias nos joelhos, Mykonos, um chihuahua de 8 anos, sobrevive à base de óleo de canabidiol. Priscila Couto, a tutora, telefona periodicamente para associações que fornecem produtos à base de cannabis em busca de um frasquinho. Ela precisa da receita de um médico veterinário. Sem isso, o cachorro pode convulsionar devido à dor aguda.
Ao receber a notícia sobre a nota do CFMV, Couto disse que “não sabe mais como vai fazer”: “Se era difícil antes, agora vai ficar mais difícil, já que eles não podem mais nem dar a receita”.
O cachorro precisa de 10 ml de óleo de canabidiol por ano a um custo de mais ou menos R$ 400, segundo Couto. Ela conseguia o medicamento com a receita após contato com diferentes associações, que nem sempre estão funcionando.
“É muito complicado achar [o medicamento], as associações abrem e fecham e a pessoa que trabalhava lá não pode mais fazer, é superburocrático pra eles (…) não é fácil de encontrar e, agora, a gente precisa entrar com um processo para judicializar o cachorro”, explicou.
As associações às quais Couto se refere são instituições criadas para tentar dar acesso aos medicamentos por meio da Justiça, representando os interesses e anseios das pessoas que necessitam da planta.
Algumas delas passaram a existir antes de 2015, quando a importação para uso humano foi liberada no Brasil, e conseguiram o direito de plantar a cannabis para fornecimento do medicamento. Outras, trabalham na ajuda do aparato jurídico às famílias, entre outros interesses.
Katia Ferraro, veterinária e coordenadora de grupo de trabalho veterinário na Associação Brasileira das Indústrias de Cannabis (Abicann), explica que não está claro qual é a alternativa mais prática para agir enquanto não há regulamentação por parte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ou Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
Uma das alternativas é judicializar caso a caso, pet por pet.
Montezuma afirma que, por enquanto, as experiências relacionadas a isso não são positivas. Um dos casos utilizados como exemplo pelo CFMV é o da advogada Daiane Zappe e sua cachorrinha de 12 anos. Em 2018, a beagle estava com um tumor neurológico inoperável e já recebendo dipirona, tramal e outros medicamentos para dor. Sem saída, a tutora conseguiu uma receita com um veterinário neurologista para importação de medicamentos à base de cannabis.
Zappe disse ao g1 que, inicialmente, a Anvisa respondeu que a liberação era com o Mapa. Ao entrar em contato com o ministério, a bola voltou para a reguladora – que, então, disse que os pedidos só podiam ser feitos para pessoa física. A advogada entrou na Justiça, teve o pedido de liminar negado e mais informações foram exigidas. A cachorra morreu após 7 meses de imbróglio sem resolução.
Já Priscila Couto, a tutora do Mykonos que conseguiu o medicamento por meio das associações, explica que o controle da dor por meio do canabidiol foi a única solução viável para manter o animal com qualidade de vida. Segundo ela, o cachorro não apresentou “nenhum efeito colateral”.
“Eu só vi coisas boas. O apetite melhorou bastante, né, porque com dor a gente não quer comer muito. Melhorou a disposição, o comportamento, hoje ele tá mais tranquilo. Ele era mais bagunceiro. Eu não tenho nada de ruim pra falar”, disse Couto.
Inicialmente, Montezuma disse que o CFMV estava em tratativa com a Anvisa para tentar uma reunião a respeito do assunto. A agência informou ao g1 que não não existe “reunião agendada entre Anvisa com o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) para tratar do tema” e, ainda, que tem a competência “somente sobre os medicamentos e produtos para saúde humana”.
Segundo Montezuma, a terapia canábica é “fartamente comprovada cientificamente, principalmente fora do país”. Os componentes da cannabis são utilizados no tratamento da epilepsia refratária, sinomose, dor aguda, ansiedade e até para controle de alguns comportamentos dos cães e gatos, como a ansiedade de separação.
Em um estudo randomizado controlado – quando se compara o efeito e o valor de uma intervenção em relação a um grupo placebo – 20 cachorros da raça beagle adultos receberam diferentes doses de medicamentos derivados de cannabis. Eles foram divididos em grupos e a administração do canabidiol foi bem tolerada pelos cães, com “nenhuma mudança clínica importante a ser mensurada em relação à segurança”.
Essa pesquisa, publicada em 2020, é uma entre “milhares de trabalhos científicos de cannabis na veterinária”, de acordo com Ferraro. Entre algumas mais recentes, de 5 de maio de 2022, a especialista lembra de uma revisão feita por pesquisadores brasileiros. Diego Fontana de Andrade, o autor principal, é do Laboratório Federal de Defesa Agropecuária do Rio Grande do Sul.
O artigo analisou os resultados de 19 pesquisas científicas sobre o uso de produtos à base de cannabis em animais de estimação. O trabalho concluiu, então, que a administração dos produtos é segura. Além disso, os estudos demonstraram que medicamentos com canabidiol “promovem potencialmente a melhoria da qualidade de vida e reduzem a percepção da dor em animais afetados pela osteoartrite canina (doença degenerativa articular)”.
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