Em 2021, após um longo período de escolas fechadas na pandemia, ler palavras simples e isoladas, como “vovô” e “peteca”, era algo impossível para 1 a cada 3 crianças brasileiras de 8 anos, mostram os dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). Nessa idade, elas já deveriam estar alfabetizadas.
Apesar de serem números preocupantes, ainda é possível “virar o jogo”, mostram estratégias de sucesso adotadas no Brasil e no mundo (saiba mais abaixo).
“Com políticas públicas bem implementadas, em um ou dois anos, dá para mudar esse cenário. Mas precisam ser iniciativas em escala e no país todo, coordenadas por um Ministério da Educação (MEC) ativo, que dê apoio técnico e financeiro”, afirma Gabriel Corrêa, gerente de Políticas Educacionais da ONG Todos Pela Educação.
Dentre as táticas que estão dando certo, estão:
Em Suzano (SP), por exemplo, apenas 20% dos alunos das escolas municipais do 1º ao 5º ano sabiam ler e escrever em fevereiro de 2022. Depois de uma força-tarefa da rede, com aulas de reforço e jornadas estendidas, o índice saltou para 75% em agosto, afirma a secretaria municipal de educação.
Na zona rural da Índia, onde usualmente metade das crianças não são alfabetizadas na idade correta, 75% dos prejuízos em linguagens e matemática foram compensados em apenas 6 meses de reabertura das escolas. Como? Por meio da convocação de voluntários para dar aulas extras nas escolas.
Nesta reportagem, o g1 mostrará os detalhes desses e de outros programas que estão conseguindo melhorar os índices de alfabetização dos alunos prejudicados pela pandemia de Covid-19.
É importante agir logo, defendem os educadores, porque o atraso escolar é uma “bola de neve”: uma criança que não sabe ler e escrever passará a ter dificuldade de acompanhar os conteúdos dos anos seguintes, inclusive de outras disciplinas. Ficará bem mais difícil entender as matérias de ciências ou de história, por exemplo, sem poder decifrar o que está escrito nos livros didáticos.
“A consequência principal será o aprofundamento das desigualdades”, afirma Maria Alice Junqueira, coordenadora de projetos do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).
“Quando a criança não aprende, o nível de motivação dela diminui. No quadro socioeconômico em que estamos vivendo, de famílias empobrecidas, aumenta ainda mais o risco de os alunos saírem da escola para começarem a trabalhar. Não podemos deixar isso acontecer.”
Aos 10 anos, Isabella Rodrigues estuda em uma escola pública de São Roque, no interior de São Paulo, e passa uma parte do período letivo com crianças mais novas, de outras turmas, auxiliadas por um professor “extra”.
Oferecer essa tutoria reforçada e reagrupar os estudantes de acordo com o nível de conhecimento deles são iniciativas do programa “Aprender Juntos”, adotado pelo município com orientação da secretaria estadual de educação.
“Minha filha tem autismo leve e, mesmo com as atividades adaptadas pela professora na pandemia, não conseguiu aprender a ler e a escrever com a escola fechada. Eu não me sentia preparada para ajudar”, diz a mãe dela, Kelly Ferreira.
“Agora, com essa convivência com outras turmas e com as aulas de reforço, ela está alfabetizada.”
Essa estratégia de reagrupar os alunos também está sendo adotada em Serra Talhada, no sertão de Pernambuco.
Marta Cristina, secretária de educação do município, conta que, desde que as escolas reabriram, são feitas avaliações constantes para detectar em tempo real o nível de leitura e de escrita dos alunos. A partir do diagnóstico, é possível traçar um plano de ação.
“Separamos as crianças por nível, mas é algo temporário. Formamos grupos de no máximo 10 estudantes — por exemplo, um só com quem ainda não lê nada. É como se tivéssemos pacientes e quiséssemos dar alta para eles”, diz Marta.
As defasagens são profundas em alguns casos. “Fazer a educação remota chegar aos lares na pandemia foi a tarefa mais difícil da minha vida profissional. Falavam muito em estudar pelo celular, mas as crianças morando no pé da serra não tinham nem energia elétrica em casa”, conta a secretária.
Aos poucos, o quadro está sendo revertido: Serra Talhada tem duas das 50 melhores escolas de Pernambuco, eleitas pelo governo do estado no programa Criança Alfabetizada 2021.
“Há casos de alunos que não liam nada, só sílabas, e que depois de um mês de reforço já conseguiram ler textos inteiros”, conta Marta Cristina.
As aulas extras acontecem no contraturno escolar (quando há espaço disponível) ou no próprio período de aula das crianças.
Corrêa, do Todos Pela Educação, explica que as redes enfrentam obstáculos para oferecerem horas extras de reforço no período oposto ao regular (por exemplo: o aluno estuda de manhã e passa a ficar um tempo a mais à tarde, para a recuperação). “Esbarra na questão da merenda, porque várias secretarias não vão ter recurso suficiente para oferecer almoço”, afirma.
“Ainda existe a questão do transporte, de ter de ir para casa, comer e aí retornar para a escola. Muitas acabam não voltando. Por isso, se as redes conseguirem organizar tudo no turno normal, melhor. Vamos engajar mais alunos assim.”
Maria Alice, do Cenpec, explica que é preciso flexibilizar o currículo para acelerar a aprendizagem – em vez de transmitir absolutamente todos os conteúdos de 2020 e 2021, o melhor é escolher as habilidades mais importantes para uma criança daquela idade e tentar desenvolvê-las aos poucos.
“Precisamos elencar prioridades. O resto vai ser ensinado nos próximos anos”, diz.
Em Suzano, na região metropolitana de São Paulo, os professores aplicaram avaliações diagnósticas para decidir quais seriam as tarefas mais “urgentes”.
“No 1º e no 2º ano, vimos que tínhamos de focar na aquisição da base alfabética. As crianças estavam cansadas e desinteressadas, então, desenvolvemos técnicas mais lúdicas nas aulas, para que elas se sentissem acolhidas”, conta Rosângela Matias Andreatti, técnica de área de Educação Infantil e de Educação de Jovens e Adultos (EJA), da Secretaria de Educação.
O esquema de montar pequenos grupos orientados por tutores na alfabetização está dando certo no exterior, afirma Thiago Bartholo, professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“Existe um custo para contratar profissionais extras, mas é um método comprovadamente eficaz.”
Em mais de 80 distritos do Tennessee, nos Estados Unidos, por exemplo, fundos estaduais e federais foram usados para empregar docentes que dariam aulas para turmas de 3 a 4 alunos, 90 minutos por semana. Os resultados têm sido positivos principalmente nas aulas de língua inglesa, afirmam as autoridades locais.
Na Índia, cientistas analisaram o desempenho de 19 mil crianças em idade escolar, na zona rural de Tamil Nadu. Elas ficaram 1 ano e meio sem aulas presenciais. Depois de 6 meses da reabertura dos colégios, com reforços e aulas específicas, 75% dos déficits de aprendizagem haviam sido supridos.
Segundo o estudo, esse progresso foi obtido por meio de um programa estadual com:
Gabriel, do Todos Pela Educação, ressalta que, com esse exemplo da Índia, é possível perceber que “crianças em vulnerabilidade, se acompanhadas, não vão estar condenadas para sempre”.
“Dá para virar o jogo”, afirma.
Fonte: g1.globo.com
Divulgar sua notícia, cadastre aqui!