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Enfermeira da ala covid-19 em Marabá relata exaustão e perdas de colegas e familiares

Desde março de 2020, quando foi confirmado o primeiro caso de covid-19 no Brasil, os profissionais da saúde vêm travando uma batalha diariamente. Com extensas jornadas de trabalho, lidando com a morte de pacientes, colegas de trabalho e entes queridos, esse grupo tem sofrido com as alterações que a pandemia causou – e ainda tem causado – na rotina pessoal e profissional de cada um.

A enfermeira intensivista Percília Augusta Santana da Silva, 48, nunca imaginou que viveria os últimos 12 meses da forma que viveu: trabalhando na linha de frente de um hospital, que cuida de pacientes infectados pela covid-19.

Há 21 anos atuando na profissão, ela atende pacientes graves acometidos pelo vírus, que chegam até o Hospital Municipal de Marabá. Ao CORREIO, Percília descreve de forma clara e objetiva tudo o que viveu durante esse período e, como viu sua rotina de trabalho mudar completamente no último ano.

Para ela, a fé e a ciência andam juntas, na esperança de dias melhores. Acompanhe, a seguir, uma espécie de Diário de uma Enfermeira, mas sem obedecer a um critério cronológico:

Começo da pandemia

“O coronavírus chegou de forma rápida e assustadora e, em Marabá, não foi diferente. Pegou todos os setores da saúde de surpresa. Ninguém imaginava que era uma doença tão crítica, grave e arrebatadora, que causaria milhares de mortes ao redor do mundo.

Logo no início, houve um dia que tivemos 14 óbitos. Era o tempo todo chegando pacientes graves, o SAMU não parava de trazer gente. Naquele dia me senti como se estivesse numa guerra. Não só eu, mas toda a equipe ficou bastante abatida. Todo mundo chorou. Era como se estivéssemos sendo invadidos por um inimigo que saia matando todo mundo.”

Para a jornalista Ana Mangas, Percília abriu o coração e contou os desesperos de pacientes (e os dela mesma)

Momentos difíceis

“Uma vez, o SAMU chegou com uma paciente bem grave e mesmo com o hospital lotado, nós não deixamos de atender. Arrumamos uma maca e o colocamos lá. No começo, por ser tudo muito novo, os familiares acabavam acompanhando os pacientes de perto. Ela teve uma parada cardíaca e faleceu, aos 34 anos, viúva, mãe de dois filhos portadores de deficiência. Eu só pensava: ‘o que vai ser dessas crianças?’.

Havia noites que ouvíamos muitos gritos e choros pelos corredores do hospital. A gente não tinha mais lugar para colocar os corpos. Íamos colocando aonde podia. Teve uma hora que um paciente me chamou e disse que não queria mais velar corpos. Isso me chocou. Não era culpa nossa e nem da gestão. Foi tudo muito rápido, a gente não imaginava que haveria tantos óbitos.

Já vi cinco membros de uma mesma família internados. Imagina o que é isso? O pai e o irmão faleceram. Estava com uma das filhas internadas e não tive coragem de contar, corri para o banheiro e fui chorar. Fiquei sentindo a dor dela.

Certo dia um paciente chegou a segurar na minha mão e pediu que não o deixasse morrer. Eles chegam com muito medo e, é importante que tenham força de vontade e a certeza que irão sair bem dali. É preciso confiar nos profissionais e ajudar no tratamento. O psicológico do paciente conta muito”.

Perdas

“Estou há um ano trabalhando diretamente com a covid-19 e já perdi colegas de trabalho, amigos e meu esposo, que faleceu há 8 meses. Estive do lado dele o tempo todo. Meu marido era obeso, além disso, não acreditava na doença, achava que a máscara não protegia. Quando ele adoeceu, a equipe médica avisou que precisaria ser intubado. Ele segurou na minha mão e disse que não queria, eu então, como esposa e enfermeira, respeitei a vontade dele. Seu estado de saúde foi agravando, ele não cooperava.

Em uma das visitas, cantei, orei e, senti que naquele momento, Deus estava me dando a última oportunidade de me despedir do meu esposo”.

Atendimento humanizado

“Não sei se foram as perdas que já tive na minha vida que fizeram com que eu tivesse uma sensibilidade maior. Sou evangélica e, quando chego aos meus plantões, coloco um louvor baixinho e percebo que os pacientes gostam. Toco na mão de cada um, digo que eles vão sair dali e logo estar com a família.

Quando o paciente recebe alta, nos faz ter esperança. Muitos foram intubados, ficaram muito mal na UTI e saíram do hospital com a plaquinha ‘venci a covid-10’, isso é muito bom.

Dívidas e prejuízos financeiros têm como se recuperar ao longo do tempo, mas a morte não. Existem famílias sendo devastadas pelo vírus. Pais e mães estão morrendo e deixando seus filhos órfãos.

Trabalho pra salvar vidas. Não quero que as pessoas passem pela dor que eu passei e que minhas filhas passaram. Tenho uma filha de 8 e uma de 18 anos, que ficaram órfãs de pai”.

Medo

“Todos os dias tenho medo, mas tenho uma fé tão grande, que me impulsiona e me motiva. Penso muito nas minhas filhas. É uma doença traiçoeira e silenciosa. Todo dia a gente vê pessoas morrendo.

O coronavírus veio nos ensinar tanta coisa. Ele não escolhe cara, coração, cor. Não adianta você ter dinheiro, porque não tem leito. Esse vírus veio nos ensinar que pobre e rico são todos iguais, veio ensinar sobre a humildade e, principalmente, sobre o amor e o resgate do amor à família”.

Cansaço

“É inevitável. Teve uma fase que muitos colegas estavam adoecendo e se afastando, então tivemos uma sobrecarga de trabalho. Mas o nosso desejo era de salvar vidas. Por mais que a gente esteja cansado e exausto, nós estamos lutando. Há colegas que já ficaram de 3 a 5 dias direto. Quando um paciente vem a óbito é muito frustrante pra gente”.

Psicológico abalado?

“Procurei ajuda. Foram três anos consecutivos de perdas e, quando meu esposo faleceu, ano passado, procurei um psicólogo e um psiquiatra. Lidar com a dor não é fácil. O medo de ter que cuidar das minhas filhas sozinha, de ter que ser forte e continuar trabalhando, porque tem muita gente precisando. Ouvi pessoas me dizerem para eu sair do setor covid-19, mas não quis. Posso contribuir com a experiência que tenho.

As pessoas estão insensíveis. A gente está com um hospital lotado enquanto um monte de gente está aglomerando. Isso é ignorância, egoísmo. Será que nenhum desses, já passou pela dor dos que estão hospitalizados ou perderam algum familiar?

Quando alguém falece, o reconhecimento do corpo é feito de uma forma muito cruel. O familiar vê somente uma foto, que é tirada por um tablete. Eles não podem se despedir, o corpo é entregue num saco cinza, dentro de um caixão lacrado que vai direto para o cemitério. Isso dói. Machuca.”

Esperança sempre

“A doença existe e é grave. Se você ama a sua família, cuide deles. Usem máscara, façam a higienização corretamente e não aglomerem.

Tenho muita esperança e muita fé. Na Bíblia diz ‘se o meu povo, que se chama pelo meu nome, se humilhar e orar, buscar a minha face e se afastar dos seus maus caminhos, dos céus o ouvirei, perdoarei o seu pecado e curarei a sua terra’. É isso que está faltando pra gente, pedirmos a Deus misericórdia e perdão.

Que possamos pedir forças. Isso é uma guerra e, guerra, só se vence com união”. (Ana Mangas)

Fonte: correiodecarajas.com



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