Na casa da amazonense Maria Luiza, de 23 anos, a alimentação é escassa. A dona de casa está desempregada há três anos e seu marido disputa bicos ocasionais escamando peixes, uma atividade comum na cidade de Manacapuru — distante 98 km da capital do Amazonas — onde vivem.
O casal tem dois filhos: um bebê de 7 meses e outro de 3 anos. A família convive diariamente com a incerteza em relação à alimentação.
“Tem dias que não temos o que comer. Já cheguei a chorar depois que meu filho me pediu comida e não tinha nada para dar”, conta Maria Luiza.
A região Norte do Brasil, onde está localizado o estado do Amazonas, é a mais atingida pela má distribuição de alimentos no Brasil atualmente: 71,6% sofrem com a insegurança alimentar, enquanto a fome extrema faz parte do cotidiano de 25,7% das famílias — o equivalente a algo em torno de 4,6 milhões de pessoas.
Os índices são superiores aos das médias nacionais: em todo o Brasil, aproximadamente 43,2% da população sofre com insegurança alimentar leve ou moderada e 15,5% com a forma mais grave.
Os dados são do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede PENSSAN e divulgado no início de junho.
Já segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), 28,9% da população enfrenta a insegurança alimentar moderada ou grave.
Diante do cenário de fome crescente no país, especialistas consultados pela BBC News Brasil apontam que as crianças podem ser as mais atingidas.
Durante os primeiros anos de vida, a evolução do cérebro acontece a uma velocidade incrível — a 1 milhão de conexões entre neurônios por segundo. E a desnutrição pode impactar diretamente no fornecimento de nutrientes necessários para esse desenvolvimento.
Há duas formas de desnutrição primária: a subnutrição e a obesidade. A primeira pode se apresentar em todos os níveis de insegurança alimentar, mas tem maior incidência nas fases moderada ou grave.
Os médicos consideram justamente os primeiros mil dias de vida — período que vai do início da gravidez até os 2 anos — como a fase mais importante para o desenvolvimento físico e mental do ser humano.
Ambos dependem integralmente da ingesta alimentar e, enquanto o triptofano está presente principalmente em proteínas de alto valor biológico, como carnes, sementes, nozes, castanhas e amendoins, os ácidos graxos ômega-3 são encontrados principalmente em peixes oceânicos, e, em menor quantidade, em vegetais escuros.
“As fontes de triptofano e ácidos graxos ômega-3 são alimentos mais caros. E com o quadro de fome que vivemos no momento, podemos ter toda uma geração de crianças cronicamente mal nutridas em uma fase do desenvolvimento super importante”, diz ele.
Segundo Serfaty, a falta do triptofano reduz drasticamente os níveis de serotonina no cérebro, atrasa a formação de conexões e a capacidade plástica dos circuitos neurais em desenvolvimento.
“O cérebro em desenvolvimento só adquire as plenas capacidades sensoriais, motoras e cognitivas mediante a existência de plasticidade”, explica.
No caso dos ácidos graxos ômega-3, os estudos com animais de experimentação mostraram que a carência nutricional também pode resultar em danos permanentes ao refinamento de circuitos neurais e alterações na plasticidade cerebral, principalmente quando ocorre nos primeiros anos de vida.
“Notamos um grande atraso na maturação dos sistemas sensoriais e a indução de um processo de neuroinflamação causados pela restrição nutricional”, explica Claudio Serfaty.
“A própria neuroinflamação atrapalha muito o desenvolvimento do cérebro.”
Portanto, esses estudos sugerem que a má nutrição durante a infância, entre outros aspectos, pode alterar o curso temporal e os parâmetros de conectividade, impactando a capacidade de aprendizado.
Segundo o médico, as sequelas deixadas pela deficiência nutricional tendem a ser permanentes quando a desnutrição progride de forma contínua durante os 5 primeiros anos de vida.
“Os nutrientes pesquisados são importantes durante a vida toda, mas sua falta na infância pode induzir quadros permanentes”, diz.
“Nossos modelos experimentais dizem que se a criança tiver o restabelecimento de uma dieta saudável dentro dos primeiros anos de vida é muito possível que esses déficits sejam transitórios, mas em caso contrário corre-se o risco de produzir danos permanentes.”
Estudos apontam ainda que, independentemente de ter ocorrido uma lesão cerebral, uma criança que tem a fome não saciada pode perder a motivação para explorar o ambiente e, assim, ter um atraso na aquisição de certas habilidades cognitivas.
A fome ainda pode ser uma barreira a mais para que as crianças de baixa renda consigam quebrar o ciclo de pobreza em que vivem.
“A má alimentação tem impactos que vão além da saúde física também. Um adolescente que cresceu em meio a um ambiente de insegurança pode perder a oportunidade de estudar e mudar de vida, por exemplo”, diz Márcia Machado.
A professora ressalta ainda que a privação de alimentos pode impactar na saúde mental das crianças, durante a infância e no futuro.
“A fome causa uma sensação de estresse permanente, que chamamos de estresse tóxico. Uma criança que vive nessa situação tende a apresentar sinais de irritabilidade e depressão no futuro, especialmente na adolescência”, diz a professora da Universidade Federal do Ceará.
“Quando isso está associado a um comportamento também mais estressado dos pais, que estão preocupados e por vezes mais agressivos, as consequências são ainda maiores.”
Um estudo desenvolvido por uma professora britânica e publicado em 2013 no periódico científico Journal of Affective Disorders indicou que a fome na infância pode ser um fator preditor da depressão e do aparecimento de ideias suicidas na adolescência e no início da idade adulta.
“O poder público precisa dar atenção não somente para as crianças em situação de fome, mas para a família toda”, diz Márcia Machado.
“O cérebro na infância é como uma esponja e as crianças são muito influenciadas pelo ambiente em que vivem, além de pelos componentes genéticos.”
Também moradora do Amazonas, mas do município de Careiro Castanho, a 124 km de Manaus, Eriane, de 34 anos, se emociona ao falar da situação de escassez que sua família enfrenta atualmente.
Ela e o marido Josenias, 49, criam os seis filhos pequenos, entre crianças e adolescentes, com dificuldade. A família é afetada pela crise econômica, mas também pelo período da cheia dos rios da região.
Josenias trabalha com pesca, mas a cheia prejudica muito a oferta de peixes. “O que ele pega não dá para nada, nem para a família toda comer”, diz Eriane.
“Quando não tem nada para comer e as crianças reclamam de fome, dou chá e farinha para encher a barriga.”
“Às vezes, a gente dorme com fome, eu e ele [marido], porque eu não gosto de ver meus filhos passarem fome. A gente deixa de comer pra dar para eles.”
A família precisa contar com a solidariedade dos vizinhos, dos parentes e até da igreja que frequenta para sobreviver. “Meu benefício do Bolsa Família está bloqueado e ainda estou tentando resolver”, diz Eriane.
Assim como Maria Luiza, eles também recebem auxílio da ONG Visão Mundial, mas na forma de cestas básicas. A organização comanda um projeto de combate à fome, com foco em crianças e adolescentes, em todos os estados e no Distrito Federal.
“A fome está impactando profundamente a vida de muitas pessoas na região Norte do país. Observamos essa realidade nas pesquisas mais recentes sobre insegurança alimentar, mas também diariamente nos atendimentos feitos pela ONG”, diz Daiane Lacerda, gerente de projeto da ONG Visão Mundial.
“No Amazonas em especial, além da pandemia e da crise econômica, as famílias têm sentido muito o impacto da época de cheias. Além da dificuldade na pesca, a alta dos rios também prejudica a agricultura familiar”, completa Lacerda.
A professora Márcia Machado atribui o crescimento dos índices de insegurança alimentar em todo o país, mas especialmente nas regiões Norte e Nordeste, não apenas à pandemia e crise econômica, mas a uma “desorganização nas políticas de acompanhamento nacionais”.
“Houve uma certa desorganização nas políticas de acompanhamento e atenção primária. Não houve um modelo nacional ou um protocolo único de medidas que poderia ter mitigado os impactos da pandemia na situação econômica e alimentação da população em todo o país”, diz.
Fonte: g1.globo.com
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