Novas diretrizes da Organização Mundial da Saúde redefinem os limites das gorduras saturada e trans (Foto: Dulla/SAÚDE é Vital)
Em 2016, foram contabilizados 54,7 milhões de mortes no mundo, sendo que 72% aconteceram em razão de doenças crônicas não transmissíveis. Entre elas, destacam-se, de longe, os problemas cardiovasculares, responsáveis por quase metade dos óbitos. Indigesta, essa cifra tem muito a ver com o que as pessoas estão botando no prato. Não à toa, a Organização Mundial da Saúde (OMS) elaborou um documento que prevê maior vigilância em relação ao consumo de dois tipos de gorduras: as saturadas e as trans. De acordo com a entidade, o foco nesses ingredientes se deve ao fato de que abusar da dupla coloca o organismo na zona de risco de infartos e AVCs.
Para quem atua na área, os novos valores sugeridos pela OMS (que já foi para consulta pública e agora deve passar por revisão e finalização) não causam espanto. No que diz respeito à gordura saturada, por exemplo, a indicação é que ela represente, no máximo, 10% das calorias totais ingeridas no dia a dia – meta com a qual a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) já trabalha.
“Diante de tantas informações que temos visto por aí, o intuito da OMS é se posicionar”, comenta a nutricionista Roberta Cassani, do Instituto de Nutrição, em Itu, no interior paulista, e uma das autoras da primeira diretriz sobre consumo de gorduras da SBC, publicada ainda em 2013.
De fato, há uma espécie de Fla-Flu rolando no campo da alimentação. Ele envolve, de um lado, os carboidratos e, de outro, as gorduras. Há quem garanta que a solução para dispor de uma saúde plena é focar em baixar pra valer a ingestão de massas, pães e arroz – integrantes do primeiro time. Daí, mesmo com uma maior participação das gorduras na rotina (e eventualmente da saturada, encontrada em carnes, manteiga, leite e coco), o coração ficaria numa boa.
Só que é essa a linha de pensamento radical que muitos experts na área desejam combater. “Precisamos de equilíbrio”, defende a nutricionista Elisa Jackix, professora da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Segundo ela, se a alimentação contiver de 45 a 60% de carboidratos e cerca de 30 ou 35% de gorduras totais (respeitando o máximo de 10% em termos de saturadas), não há motivo para preocupação.
O que não dá é para compensar a ausência de um com o excesso do outro. Daí o colesterol sobe de qualquer jeito, deixando as artérias no sufoco.
Saturada: Seu consumo não deve passar dos 10% das calorias ingeridas em um dia. Ela está na carne vermelha, nos queijos e no leite. Ainda entra em muitos produtos industrializados. Saiba mais sobre ela clicando aqui.
Insaturada: É subdivida em duas versões. A ingestão da poli-insaturada deve ficar entre 6 e 10% das calorias diárias, enquanto a mono-insaturada tem um limite de 20%. A primeira inclui o ômega-3 da linhaça e dos peixes de água fria, assim como o ômega-6 de muitos óleos vegetais. Já a segunda é representada pelo ômega-9, gordura presente no azeite de oliva, no abacate e no óleo de canola. Conheça esses nutrientes clicando aqui.
Trans: Essa, do ponto de vista de saúde, é indefensável, como falaremos mais pra frente. O ideal seria aboli-la.
Levando em conta justamente a necessidade de prudência, o cardiologista Heno Lopes, da Unidade de Hipertensão do Instituto do Coração (InCor), na capital paulista, ficou sem entender por que a OMS não aproveitou para reforçar a importância de maneirar nos carboidratos. Ainda mais após o PURE, um estudo publicado recentemente no renomado periódico científico The Lancet.
Ele contou com a participação de mais de 135 mil indivíduos dos cinco continentes e observou, depois de sete anos, que o alto consumo desse nutriente elevou o risco de mortalidade. “O carboidrato simples invadiu a vida das pessoas. E ele mata mesmo”, frisa Lopes, fazendo menção à versão presente em produtos refinados, como arroz e pães brancos, além de uma infinidade de itens industrializados. Isso porque seu excesso é estocado no corpo em forma de… gordura.
A nutricionista Valéria Arruda Machado, da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp) só faz questão de notar que, no estudo, os maiores fãs de carboidratos chegavam a ter uma dieta composta de 75% de fontes do nutriente – ou seja, realmente mais do que o preconizado.
Já os participantes considerados grandes consumidores de gorduras saturadas não fugiam tanto da recomendação clássica dos nutricionistas – essa de não ultrapassar os 10% do valor calórico total da dieta. Por isso, não houve ligação com doença cardíaca entre esse pessoal.
“O que fica evidente é que não adianta reduzir a gordura saturada e colocar carboidratos simples no lugar. É como trocar seis por meia dúzia”, afirma Valéria. Para ela, o inteligente é focar em alimentos ricos em carboidratos complexos, como os achados em grãos, vegetais e massas integrais.
Também se percebe que não faz sentido enlouquecer em busca de uma dieta magrinha, paupérrima em gordura – mesmo que seja da famigerada saturada. “A gente precisa dela. Inclusive, é tão imprescindível que nosso corpo consegue produzi-la”, ensina o nutricionista Dennys Cintra, pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Fica fácil entender por que o organismo pede sua dose de gordura. “Nossas células são revestidas por membranas constituídas basicamente de lipídios”, conta Elisa, usando o nome técnico desse grupo de nutrientes. A versão saturada tem ainda uma missão especial: atua na produção de hormônios. É por esse motivo que não se recomenda gastar a cota total de gorduras só com as versões mono e poli-insaturadas, consideradas mais saudáveis.
Opa, quer dizer que temos até de garantir nossa parcela de saturadas? “Todos os problemas de saúde retratados nos estudos vêm do consumo acima de 10% no total da dieta”, informa Cintra.
Nos últimos tempos, uma porção de gente parece ter virado especialista nos subtipos dessa gordura. Tudo por causa do óleo de coco. Entenda: ele é formado por ácidos graxos saturados de cadeia média, que, uma vez dentro do organismo, têm transporte facilitado para o interior das células – com isso, são queimados rapidamente. Essa explicação foi o suficiente para o óleo cair nas graças de quem busca emagrecer. Mas o enredo é um tanto mais complexo.
“Temos receptores em células do sistema imune que reconhecem esses ácidos graxos como se fossem bactérias”, revela Cintra. Logo, quando a gordura do óleo de coco entra em cena, nossas defesas naturais são ativadas, levando a um estado inflamatório. “Não é mentira que ela queima mais rápido. Mas, antes do benefício, vemos um prejuízo”, aponta o professor.
Ninguém precisa jogar o óleo de coco pelo ralo. “Mas vale entender que a indicação de ingestão de gorduras saturadas independe do tamanho da molécula [cadeia curta, média, longa]”, avisa o químico Renato Grimaldi, pesquisador do Laboratório de Óleos e Gorduras da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp.
Logo, embora existam diferentes tipos de saturadas, a ideia é se ater à recomendação de até 10% do nutriente por dia – e 7% para quem já tem algum fator de risco cardiovascular, como hipertensão ou diabetes.
E saiba que é fácil, fácil atingir esse valor. Em uma dieta de 2 mil calorias, o teor total permitido de saturada é de 22 gramas. Para ter ideia, duas colheres de sopa rasas de óleo de coco concentram 17 gramas do nutriente. Portanto, bastam duas fatias de queijo mussarela, com 5,6 gramas de saturadas, para ultrapassar a cota.
Moral da história: o derivado do coco pode entrar na rotina, mas no lugar de outras fontes gordurosas – não como um extra! E, de preferência, como óleo culinário. “Não há motivo para consumi-lo puro, em colheradas”, acredita Elisa.
Enquanto a gordura saturada pode se gabar de ter algumas serventias ao corpo humano – tanto que há recomendação de consumo -, a trans muda o tom da conversa. Nesse caso, o termo apropriado é “limite”.
Para a OMS, o nível tolerado dessa versão, encontrada sobretudo em produtos industrializados, é de 1% em relação ao total de calorias ingeridas em um dia. “É impossível defendê-la. Segundo as evidências, ela não exerce qualquer ação benéfica”, assegura Cintra.
De acordo com a nutricionista Camila Kümmel, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, a gordura trans não só aumenta o colesterol ruim (LDL), que se deposita nas artérias, como reduz a concentração do colesterol bom (HDL), capaz de estimular uma faxina nos vasos.
O melhor seria esquecê-la de vez. Para isso, é preciso examinar as embalagens dos alimentos e fugir dos que levam a gordura hidrogenada entre os ingredientes. Significa que há trans no pacote.
Checar e comparar o rótulo dos produtos é um bom começo para não extrapolar nos nutrientes com potencial de disparar reações perigosas dentro da gente. Entender em quais alimentos eles surgem naturalmente é outro passo em prol do equilíbrio. Assim como comer um pouco de tudo. O conselho, que às vezes soa tão batido, não abre espaço para cortes radicais de um lado e abusos de outro.
E pode apostar: ainda que diretrizes de saúde sejam atualizadas, essa recomendação é daquelas que nunca vão cair em desuso.
Fonte: Abril Saúde
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