A Lei Áurea, que aboliu a escravidão no Brasil, completa 131 anos nesta segunda-feira (13). A princesa Isabel assinou em 1888 a lei que concedeu a liberdade total aos negros. Antes dela, algumas leis abolicionistas já haviam sido implantadas no país. É o caso da Ventre Livre, que determinava que os filhos de mulheres escravizadas nascessem livres.
Maria Rosa de Jesus viu sua família usufruir da lei. Sua mãe, também Maria, nasceu pouco depois da lei do Ventre Livre, no interior da Bahia. Apesar de já nascerem livres, foram criadas nas fazendas e trabalharam desde a infância.
Dona Rosa, como ela gosta de ser chamada, estima ter nascido em 1913. A dúvida é comum entre os idosos, que eram registrados muito tempo depois de nascerem. Ela, por exemplo, tirou os documentos em 2 de abril de 1930 – pouco antes de se casar.
Nice, filha dela, conta que na Bahia há um documento que aponta a idade correta da mãe e que pretende ir buscá-lo, para que a centenária saiba sua real idade.
“Imagine, mamãe lembra de coisa que aconteceu em 1932, do casamento do titio, do nascimento de outros irmãos. Ela já era crescida quando foi registrada.”
Há 22 anos, a centenária recomeçou a sua vida em Guarulhos, na Grande São Paulo. Hoje, ela se sente livre para ir às aulas de forró, ginástica e adora “bater perna por aí”.
“Eu ando por tudo isso aqui. Agora não vou mais para o forró, porque a minha amiguinha Joana morreu.” Joana era a companhia de Dona Rosa no forró de sexta-feira.
Com o tempo, começou a colecionar bonecas e roupinhas para elas. Gargalhando ela conta que sempre gostou, mas foi “depois de velha” que “pegou gosto”. “Eu costurava minhas bonecas de pano e ia guardando. Depois viram e uma [pessoa] me dava uma aqui, outra ali. Agora é um tanto assim”, diz ela abrindo e fechando a mão, ilustrando que são muitos presentes.
Muito vaidosa, ela gosta de contar que põe a linha na agulha sem a ajuda de óculos, que não precisa de remédios e que consegue andar e abaixar sem dificuldades.
Além de costurar e praticar exercícios, Dona Rosa gosta de ter as unhas pintadas, usar brincos e colares.
Dona Rosa conta que era muito comum os pais não registrarem os filhos quando nasciam. As famílias moravam nas fazendas em que trabalhavam e usavam o registro de nascimento só para casar. Por essa razão, Dona Rosa tem 89 anos registrados, mas ela estima que são 106 vividos.
Registrada em 1930, ela conta que tirou os documentos já adulta para se casar — Foto: Gabriela Gonçalves/G1
Sentada em um banquinho na calçada de sua casa, Dona Rosa relembra como vivia na década de 1930. “Papai viajava bastante e mamãe cuidava de todos os filhos. Meu irmão casou nessa época e fomos todos. Foi nesta época que eu provei maniçoba [prato de origem indígena] pela primeira vez.”
Ela também se recorda de trabalhar nas casas das fazendas. Lavava roupa, limpava, pegava água nos poços ou ajudava com os irmãos.
Dona Rosa tem muito orgulho de ter passado dos 100 anos, mas ressalta que isso é frequente na família. “Mamãe morreu com mais de 100 anos. Papai foi antes, mas não me lembro quando. Meu irmão tinha 113 quando morreu lá na Bahia”, conta Dona Rosa.
A saúde, ela garante, está em dia. Ela toma um remédio por dia: o da pressão alta. “Eu não gosto muito, né? Eu prefiro tomar um chazinho aqui e outro ali”, afirma.
Dona Rosa diz que não tem segredo para viver tantos anos. “É só sorrir bastante e ter Deus no coração”.
Dona Rosa conta nos dedos os irmãos — Foto: Gabriela Gonçalves/G1
Em uma das viagens de seu pai, a irmã de Dona Rosa foi violentada e engravidou. Ao retornar para casa e ver a filha com um bebê, “papai pegou o facão, riscou o chão e foi para o quarto matar ela. Quando ele entrou, ela deu um suspiro e morreu de susto. Como dizem, ‘resguardo quebrado é morte na certa’”.
Depois disso, a sobrinha, que na época tinha 10 dias, foi criada como irmã.
Anos depois, Dona Rosa se casou com José. Com ele, teve quatro filhos que morreram recém-nascidos. O mais velho teria quase 80 anos, segundo ela. O casal teve outros dois filhos Arnaldo e Luiz, morto há três anos.
Em um desentendimento com a sogra, Dona Rosa largou o casamento e levou os dois filhos para outra fazenda. “Ela me chamou de égua e eu disse que, se eu fosse, teria três cavalos e não um só. Ela não gostou e me expulsou de casa.”
Foi nesta nova fazenda que, fruto de uma violência, dona Rosa teve, aos 53 anos, Nice, sua filha mais nova. Quando a filha completou 8 anos, a centenária pediu que um casal de idosos levasse a criança para Salvador, cerca de 650 km dali.
Segundo ela, era comum os pais enviarem as filhas, ainda crianças, para trabalharem em casas de famílias em Salvador ou outras cidades. O pagamento era em comida e moradia.
“Mamãe queria que eu tivesse mais oportunidade, que eu estudasse, que aprendesse a me virar. Eu cuidava da casa, limpava, acompanhava no médico. Assim, eu era meio que escrava, né?”
Anos depois, já adulta, Nice voltou para ver a mãe. Namorou, casou, engravidou e pediu que a mãe cuidasse do filho enquanto ela se estabelecia em Guarulhos. “Eu falei: ‘mamãe, eu volto para lhe apanhar’. E voltei. Viemos para cá em 1997.”
Desde então, as duas não se desgrudam. Dona Rosa mora com a filha, o genro e os dois netos.
Nesses 22 anos, a centenária ficou conhecida no bairro. Muito querida, fez amizades com outros idosos que a acompanham nas atividades, com as crianças, com as professoras e na igreja.
Não é tarefa fácil conversar com ela em lugares públicos. Durante a entrevista, Dona Rosa é interrompida incontáveis vezes para cumprimentar os vizinhos que passam por ela. Voltando da escola, as crianças não deixam de dar um beijo na ‘vó Rosa’. Carinhosa, ela sempre acena, manda beijo e dá a benção.
Perguntada por qual motivo ela ri com tanta facilidade, ela é categórica: “Isso é prazer em estar viva.”
Fonte: G1 Pará
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